sábado, 31 de outubro de 2009

É isso aí

Fui ontem assistir o "This Is It", de Michael Jackson. Quem me deu um belo filme, entretanto, foi a platéia.

Adolescentes gritando e aplaudindo, cantando juntos; "lindo", "gostoso", ao longo de toda a projeção. Gritaram "Aprende Ivete!", quando ele cantava "I just can't stop loving you" com a cantora contratada para os concertos. Em outros momentos, ouvi "aprende Bell Marques" e "aprende Madonna", esta acompanhada de um comentário tipo "Isso é que é (grande) show!".

Quando eu deixava a sala, um pequeno grupo de trintões cantava em coro "heal the world, make it a better place, for you and for me and the entire human race". Este número musical aleatório e oportuno fechou um ciclo de indagações que se iniciou assim que subiu o longo letreiro, que tentava me ensinar que ali estaria o último suspiro do "gênio" desaparecido, do maior de todos, do rei - e é isso aí!

Desde que Ana Carolina resolveu bradar com Seu Jorge o seu "é isso aí", que eu me pergunto qual a graça as pessoas podem achar em intransigências desta natureza. MJ aprendeu desde cedo um tal seu lugar no panteão dos semi-deuses midiáticos, que o fizeram um ser alheio a todas os acontecimentos do planeta que ele diz tanto amar.
Permaneceu isento dos sofrimentos solidários - recorria aos "I love you" e "God bless you" para se fazer entender e para escamotear sua autocracia (sem que isso seja necessariamente um defeito), subalternizando-se diante dos que estão ali apenas para servi-lo e, desta forma, tornando-os escravs obedientes e solenes a todo o tempo.
Estas dramatizações de seu vazio e de sua egolatria demonstram que seu mundo girava somente em torno dele mesmo, sem empatia e é isso aí.



Michael era dono de uma verdade só dele, presumidamente benéfica a todos, embora construída em torno da incitação à violência, do erotismo inconcluso e desonesto e de um certo messianismo de Estado - além de armas em ambientes privados, como na sequência após strip tease de Rita Hayworth. O discurso ecológico de MJ é o de quem não se compreende na cadeia de acontecimentos que destroem o planeta, como um ser que vive numa redoma, ou numa jaula.

Claro que o ajudou o contato com Nelson Mandela, a quem ele procurou como a um profeta, nos anos 90. E vir aqui ao Pelourinho de Salvador e à favela do Rio. Foram eventos de aproximação, dele com o exótico e o distante. A sua idéia de conflito, no entanto, trespassava sua família e encontrava a mídia e sua imagem pública, mais os fãs-seguidores, os acidentes e os traumas, o que gerou aquilo que se via na tela.
Para se tornar como um dos seus, para pertencer a uma comunidade, MJ, o genio musical ou a invenção de uma genialidade, tornou-se num homem branco, celébre riquíssimo consumista, a exatos peso e medida do ideal de perfeição de sua sociedade. Pagou um preço alto: seu corpo pareceria pronto a executar o show, não fossem os claríssimos sinais de dependência química de alguma droga de efeito calmante.

Na apresentação de sua turnê em março de 2009, viu-se um Michael visivelmente atordoado por substâncias, com o riso frouxo, anunciando seu intento de realizar uma série de shows na O2, enorme casa de espetáculos local.

Quando entrava no estúdio, Michael andava com um gestual mais duro, a cabeça erguida à moda dos gangsters, popularizada por rappers, porém adotada por diversos músicos negros alçados ao estrelado, levando-me a crer que tal postura fizesse parte de uma etiqueta social. Ao longo da entrevista, MJ estava descontrolado e risonho. Os óculos escuros e a máscara branca. Triste evento. (vídeo aqui)

Neste dia, tive a forte impressão de que MJ não aguentaria realizar os tais concertos. No documentário, ficou-me a certeza de que ele precisava de ajuda. Quanto devem ser criminalizadas as omissões de profisisonais que cercam artistas em grave crise de abuso de drogas?

Ninguém ali via MJ como indivíduo, sua persona criativa era sentida e idolatrada. Implicitamente, todos os atores pediam para que o indivíduo-Michael morresse. Ou ao menos não demonstraram se importar com o sofrimento daquele homem e sua incapacidade de levar sua vida. Tratavam-no sempre como o astro, inontestável e irritantemente gentil.

Nos diferentes graus de responsabilidade, cada um naquele filme prestava-se ao papel de carrasco de Michael, este um artista estagnado em sua miséria existencial, sem nenhuma novidade artística para além do aparato de engenharia. "Computadores fazem arte, artistas fazem dinheiro", sabia disso Chico Science, morto bem mais jovem e no ápice de sua atividade criativa genial. Diferente de Michael, este em alguns momentos pele e osso, especialmente quando aparece vestido com uma jaqueta preta de ombros empinados, feito pequenos chifres, semelhante a algum figurino da Disney, que o fazia se parecer um Ramone, exageradamente esguio e branco.

Michael escolhia seu vestuário no cinema. Seu consumismo era pura encenação, para parecer mais convincente seu artigo industrial. Na prece com a equipe do show, MJ mostra como ele via a seus fãs, ao dizer que a platéia estaria lá por "escapismo". E é exatamente isso, nós dissemos a Michael, logo cedo, 'não importa sua trajetória de menino, apenas sabemos de sua dança e de sua voz. Seu dom me é fundamental à vida. Exista!'.
E tudo é mentira, como bem MJ o sabia.

O filme é sobre um ensaio de um reiterado velório da mesma pessoa. O trecho "Thriller" é a confirmação deste enredo. Tudo ao dispor de um artista morto antes do tempo. Narra o filme um sangue-suga que ri, cercado de zumbis que aplaudem. MJ foi um grande artista, sem dúvida, todavia entregue às feras de seus medos, largado sozinho à beira de uma estrada escorregadia e fria.



Aqueles trintões que cantavam "Heal the World" olharam-me de soslaio, cercados por suas redomas, apenas me olharam, me julgaram e continuaram a cantar, queixo alto e passos lânguidos. Como se imitassem seu ídolo postumamente, quando ele se fantasiou de morto-vivo.

O restante da platéia também festejava coerente com as encenações que as ligavam ao ídolo. Viviam o instante por ele, abnegadas e tristes. Parte cantava "Man In The Mirror" na escada rolante, parte falava alto todas as coisas sobre o mito e sobre suas próprias emoções ao mesmo tempo. Uma outra parte, vampiros e zumbis, seguiam silenciosamente pelos corredores, à caça de uma memória, alguma ação "imoral" ou mesmo vazia de qualquer sentido, ou recheada com um óleo espesso de violência incontida.

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