terça-feira, 20 de julho de 2010

O drama como jornalismo

Este texto deve iniciar-se com uma diferenciação semântica, crucial para que o seu argumento faça sentido e ganhe relevância: há que se distinguir a hipocrisia do cinismo.

Diz-se hipócrita o dissimulado, que finge possuir crenças e valores que realmente não tem; cínico, por sua vez, é aquele que não tem empatia, descarado, sem pudor frente o sentimento e razões do alheio.

Diante destas breves definições, fica-me a dúvida: o jornalismo daquela facção que chamei Mídia Direitola, composto basicamente pelas Rede Globo e Bandeirantes e pelos periódicos dos Grupos Abril, Folha e Estado de São Paulo, é cínico ou hipócrita?

Na busca de uma resposta, ainda que parcial, vou destacar o Jornal Nacional de hoje. Eu poderia comentar o editorial da Folha, o que me levaria, provavelmente, a um mesmo resultado. Porém, muito já foi dito sobre isso (exemplos: aqui e aqui).

Considerei exemplar o episódio de hoje deste seriado, chamado há tantos anos Jornal Nacional, que já tem se tornado o mais longo da televisão brasileira. Estrelado por um casal que, de vez em quando cede lugar a outro casal, como hoje, ou a uma dupla masculina multi-étnica.

Vou descrever quatro 'cenas', como se fossem de um programa ficional, tanto para vestir o meu texto com certo "cinismo", como para poder traduzir as intenções do autor do drama, por trás das "informações" de cada fala, especialmente as dos narradores remotos, na bancada, distantes do local onde ocorre a cena, e as dos narradores presenciais.


Cena 1 - Quem pegou a gravação com o relato do "assassino"?




São 4'56" de desenvolvimento da trama anunciada no capítulo anterior, apresentando o ocorrido  no fim de semana. O suspense gerou um fato novo e resta descobrir quem roubou o vídeo e o exibiu. Teria sido vendido por Ana Maria e Alessandra, ou serão elas tão vítimas quanto Eliza? Por que Marco Antônio as expulsou da corporação, estaria ele acobertando com isso o delegado Edson, verdadeiro contrabandista do arquivo videográfico? estas não são as perguntas cruciais, embora as falas dos narradores levem o público a se ocupar delas.

Veja que a história parece ter ficado intrincada, mas é um artifício corriqueiro da dramaturgia para televisão, onde o drama ocorre em meio a uma enorme rede de tipos.

Este homem falastrão e de expressão arregalada, que passa a dominar a cena e que foi o designado a mostrar o vídeo, passa a ser figura central para o desembaraço dos acontecimentos. Portanto, a frase dos narradores, "O diretor-geral, delegado Marco Antônio Monteiro, determinou que a Corregedoria Geral de Polícia apure em 48 horas a responsabilidade pelo vazamento do vídeo", é cínica e serve apenas para confundir o público. Nada mais que isso, afinal, não seria esse novo personagem a chave para se decifrar o mistério sobre quem contrabandeou o vídeo? Afinal, quem lho entregou.

Há quem saiba mais sobre a trama que os narradores: o próprio autor. Ele que oprime o personagem, por ser dele um deus. Dono das suas alegrias e angústias, esse criador é cruel e, portanto, é cínico. Os personagens dissimulados, como estes narradores e o homem falastrão, são hipócritas. Não são donos da verdade e apenas fingem que o são. Estão a serviço do onisciente narrador, que conhece o desfecho da trama.


Cena 2 - O imperador restringe ainda mais a entrada de ex-colonos incivilizados




Esta cena é ainda mais elucidativa do lugar da hipocrisia e do cinismo neste drama. Os narradores, remotos e presenciais, fingem que isto não lhes diz respeito, vestem-se com as roupas do imperador, deixam-se contaminar por sua doença. Acima deles, o cinismo do seu líder, traduzido na primeira linha (nota-se que sãos os narradores remotos os que são designados a repetirem ipsis literis a intenção do autor. Embora hipócritas por natureza, assumem o cinismo, como marionetes do dono do drama):

" O governo dos Estados Unidos anunciou que vai mandar soldados para reforçar a segurança na fronteira com o México. A decisão foi tomada depois de mais uma chacina no país vizinho provocada por traficantes de drogas."
Cinismo! Sabem que os verdadeiros assassinos são os soldados do imperador. Os colonos incivilizados morreram em nome do triunfo do império - somente este lucra com tudo isto, o enredo é sobre esta ignomínia. Este viés do cinismo expresso pelo narrador é o que ajuda a encher a trama de vigor e a esconder a presença onisciente do autor.

O narrador em cena diz: "A polícia diz que é mais um ataque resultado de uma violenta disputa entre traficantes de drogas, que se intensificou nos últimos três anos e meio, depois que o governo do México decidiu enfrentar as quadrilhas." Hipocrisia!


Mais adiante: "Nos últimos três anos, a polícia já apreendeu 75 mil armas e pôs na cadeia 78 mil pessoas. Mas os ataques frequentes das quadrilhas mostram que a guerra ao tráfico no México está longe de acabar." Hipocrisia!

E, finalmente, o clímax da cena: "Essa nova onda de assassinatos teve reflexos também nos Estados Unidos. Nesta segunda, o governo decidiu reforçar a fronteira com o México e vai enviar para lá a partir de agosto mais 1,2 mil soldados da Guarda Nacional, que vão ajudar no combate à imigração ilegal e ao tráfico de drogas." Hipocrisia! É por esta dissimulação em omitir que conhece o resultado do conflito que o autor utiliza os personagens para anunciar as cenas dos próximos capítulos, deixando o público em suas mãos, continuamente.


Cena 3 - O reaparecimento do 'miquinho'



Apenas uma cena de passagem, em que a narradora expressa, sem muita maestria, a sua hipocrisia. A frase, "A expansão das plantações de chá no país é apontada como responsável pela quase extinção desse primata", dssimula sobre a responsabilidade do opressor, sujeito oculto na história. Ela sabe de quem eram as plantações de chá, mas não quer que o público desperte seu ódio para com este antagonista, como seria natural. Faz isso, para preservar a continuidade do drama. Obedece ao cinismo do dono desta ficção. Um autor maniqueísta preserva com mais veemência a integridade de seus vilões.


Cena 4 - A floresta vazia e o caboclo ludibriado




Aí está um modelo típico de anuência cordata entre narrador e autor. Simbiose quase perfeita, tentam expressar compaixão pelos personagens do drama, com o fim de enganar o público. No fundo, os odeiam.

""Quando falamos de Amazônia ligamos à natureza. No entanto, 70% da população da Amazônia mora na cidade"", José Ademir foi vilipendiado, como o foi Pedro Pntes, quando disse: "“Eu me considero um homem da floresta. A diferença só que nos mora na cidadezinha”". Ambos foram chamados de tolos, toda a trama serve para desnudá-los, extrai-los do seu campo de verdade, torná-los heróis de fachada, tal qual a floresta retratada.

Aqui estãoos verdadeiros heróis, adornados por suas sagas fantasiosas: "Os primeiros a enfrentar essas poderosas regras da natureza foram os portugueses, a partir do século dezessete", diz o narrador, e é quando ele asfixia Pedro Pontes, José Ademir e também o prefeito, Raimundo. Extraem destes e dos demais coadjuvantes a propriedade histórica de suas ações.

E o cinismo escondido, sorrateiramente mantido pelo autor, entre as palavras do narrador presencial, este também um enganado: "A floresta começou a ser derrubada e novas cidades surgiram por outros interesses econômicos. Para as madeireiras, floresta era só matéria prima. Para a pecuária e a agricultura em larga escala, um obstáculo a ser removido da terra". Percebe a ignomínia na afirmação quase insultosa?

Cinco minutos de um destempero perigoso para o desenvolvimento do drama: posicionar-se tão ao lado da vítima, a ponto de quase obscurecer a figura a ser obliquamente enaltecida e da qual se extrairá a lição final da tragédia.

Este seriado, diga-se uma verdade sobre ele, prima por manter um 'truque' dramatúrgico singular: a verdade é como que hipnoticamente sublimada da vontade do narrador. Ele apenas narra, apaga-se, empresta-se completamente ao drama. O autor opera por ele sua sanha moralizante, neste tipo de encenação.

No caso desta cena 4, e talvez em todo o episódio, o protagonista inaugurou sua glória há cinco séculos. Tanto o autor, como os narradores, servem-lhe de escudo. O cinismo do autor está em conhecer esta verdade e dissimulá-la, sem compaixão.

A hipocrisia está em quem, por dinheiro ou fama, intercede em seu nome e embebeda o público com uma artimanha de linguagem, que o engana e o faria achar cada dia este seriado o mais inebriante, porém, dada sua repetição e obviedade - e pela falta de talento dos narradores substitutos do casal central - estas artimanhas de ludirio estão chegando ao seu ponto de falência.

Não lhe restarão outra saída, senão substituírem a ficção por um jornalismo honesto e reto.

sexta-feira, 16 de julho de 2010

A natureza da militância

A espontaneidade das manifestações populares, durante uma campanha eleitoral é, sem dúvida, o que há de mais bonito nesse momento da ação política. Os jingles engraçados, a troça com características do opositor, os apelidos, as charges, quando obedecem os limites do respeito à dignidade, são estímulos a novas manifestações e fonte de modismos, que empolgam e ajudam as eleições a se encaixarem na agenda cultural e no imaginário dos eleitores.

'Militância', na acepção do termo, implica disposição para demonstrar a escolha política e para colocá-la voluntariamente a serviço de uma determinada facção, durante um processo eleitoral. No Brasil, militância esteve sempre ligada aos partidos de esquerda e, mesmo quando se tornaram oposição, as facções mais à direita não lograram levar às ruas um bloco organizado de apoiadores. Nas eleições locais, pela própria natureza plebiscitária que normalmente caracteriza estes pelitos, uma certa militância se manifesta, todavia imbuída de sentimentos híbridos, e se repercute inclusive nas relações de vizinhança.

Porém, num contexto de eleições nacionais, a militância cuida de expressar gritos de luta de segmentos sociais vítimas de maior opressão e, neste quesito, é a esquerda que tem dado ao Brasil os melhores exemplos de força militante, a ponto de a ala petista, por exemplo, ser alvo de ódio de classe de grupos e indivíduos atrelados a facções mais à direita.



Nas eleições de 2010, esta força espontânea e aparentemente caótica já vem se covergindo em mensagens de apoio à candidata do PT (coligado com PMDB-PDT-PC do B-PSB-PP-PRB-PR-PSC-PTC-PTN),  Dilma Roussef, em vídeos publicados na rede e divulgados pelo conjunto de blogueiros que, também espontaneamente, formam um verdadeiro esforço conjunto para viabilizar a propagação de contra-informação em relação à mídia preponderante, que explicitamente defende o candidato do PSDB (coligado com DEM-PPS-PTB(?)), José Serra.

Por mais que tentem confirmar o contrário, o que se tem é uma inteligência coletivca operando-se voluntariamente em favor da continuidade do governo Lula, configurando no Brasil a aura de uma militância cibernética. No início deste ano, comprovaram-se as suspeitas de que a campanha de José Serra contaria, por sua vez, com um "exército", nas palavras de um dos seus coordenadores de campanha, Sr. Eduardo Graeff, composto por blogueiros contratados, que atuariam no sentido de espalhar mensagens apócrifas, acusações e ofensas sobre Dilma e seus aliados.

Ocorre que, esta força-tarefa orquestrada pelo comando da campanha serrista e regida também por "colonistas" de veículos como O Globo, Folha de São Paulo de São Paulo e Veja, não tem  conseguido muito, além de espalhar petardos preconceituosos, injuriosos e de extremo mau-gosto, o que acaba por contrariar o senso comum brasileiro, muito mais afeto ao humor ou ao protesto.



Os dois bons exemplos que eu trago promovem a associação da campanha de Dilma Roussef a segmentos de minoria muito importantes: o LGBT e o de Jovens da periferia. É muito interessante perceber que jovens homossexuais e negros ligados ao Hip Hop dispõem-se a se articularem à campanha da petista. Uma confirmação de que, ao contrário do que muitos acreditam, o PT, quando governo, repercutiu demandas destes segmentos, o que os faz se sentirem representados e dispostos a dialogarem por mais serviços a eles voltados.

Maior e mais bela que qualquer possibilidade de análise é a natureza desta militância. Espontânea, despretenciosa, respeitosa e criativa. É bonito ver o povo apoiando seu governante. Segundo Wilde, "todo governo é ruim". Sem dúvida, mas que há governos melhores que outros, isso o há! E, quando oprimidos se dispõem a defender um governante, é porque ele vem atenuando sua opressão. "Sorry Serra", mas neste ponto, pelo jeito, o governo destes é melhor que o governo dos seus. Ao menos os seus são mais raivosos e nunca fizeram a blogosfera brasileira refletir com parcimônia ou, simplesmente, rir um bocado.

quinta-feira, 15 de julho de 2010

A face do desrespeito aos jovens

É de se espantar o grau de espetacularização a que chegou o caso do assassinato de Eliza Samudio. Supostamente, ela foi morta por uma ação engendrada  por um ídolo do futebol nacional, o goleiro do Flamengo, Bruno. Uso a palavra 'supostamente', tão querida por eles mesmos da mídia em tempos de disse-me-disse infundado, para deixar gravada a minha sensação de desconfiança para com tudo o que vem sendo veiculado pela imprensa brasileira sobre este caso.

Foram derrubados e pisoteados todos os preceitos éticos que devem pautar a prática jornalística, assim como tem sido absolutamente questionável a atuação de um delegado mineiro, responsável pela investigação. Não vou tecer maiores comentários sobre isso, mas apenas analisar a quase histeria em torno deste caso, que já toma, a meu ver, ares de uma brutal insanidade coletiva. Uma boa amostra desta violência praticada pelos veículos de comunicação e pela polícia surge no vídeo abaixo, especificamente a 0'24'', quando uma certa imagem é sorrateiramente revelada ao Brasil:



Sim, mostraram o rosto do adolescente que participou deste crime e que o atesta por seu depoimento decisivo. E ao fazê-lo, a Rede Globo demonstra duas facetas de sua ignomínia: o desrespeito às leis e às autoridades e a sanha de fazer dinheiro com a alimentação de mórbidas curiosidades do telespectador.

O Estatuto da Criança e do Adolescente é claro ao exigir a preservação da identidade de indivíduos com menos de dezoito anos de idade, especialemte em situações que os exponham a constrangimentos ou a quaisquer outros tipos de risco à sua integridade moral e física. Ao exibir o rosto deste jovem, a Rede Globo, em horário "nobre", o lançou definitivamente ao inferno do julgamento público, o desrespeitou e o desdenhou, de modo a intensificar, dentre outros mitos infames, a teoria de que se faz necessária a redução da maioridade penal.

Todavia, pelo tipo de participação deste jovem, fica claro que ele foi levado ao ato pela influência que certamente seu primo Bruno exercia sobre ele. Um adolescente, por mais envolvido que esteja com a criminalidade, é um sujeito em formação e relativamente incapaz de prever as consequências dos seus atos. É nisso que a nossa Legislação acredita e, neste ponto, ela tem meu apoio.

Sei que é fácil a contestação desta tese pelo senso comum. Eu mesmo fui um adolescente que amadureci muito cedo, que me considerei senhor de minhas escolhas lá pelos catorze anos. Contudo, mais velho, eu percebi que o que eu tinha era informação, não discernimento. Sei que, em sua maioria, os jovens possuem informações suficientes sobre o mundo à sua volta, porém estas informações pouco lhes servem cotidianamente como parâmetro para a tomada de decisões, uma vez que, antes delas, temos as configurações familiares e as dificuldades da vida que interferem sobre os seus olhares e os fazem julgar equivocadamente os fatos que se lhes apresentam.

Em meu trabalho junto a adolescentes em cumprimento de medida socioeducativa de Semi-liberdade, conheci dezenas de jovens. A maioria deles envolvidos com o tráfico de drogas, seja por meio da distribuição ou do furto para fins de consumo de crack. Outros envolvidos em agressões ou infrações contra a ordem pública, além de alguns homicidas. A maioria deles é, entretanto, vítima de um sistema social que os oprime e isola.

Sou categórico ao dizer: a minoria comete atos infracionais por ter o temperamento voltado à pratica de atos violentos; para a maioria dentre os que eu atendi, a violência é um elemento do discurso que viabliza sua inclusão entre os fortes e os temidos, de modo a escamotear seus sentimentos de inferioridade, que lhes foram inculcados desde a infância pela visão de sua própria miséria econômica e de sua exclusão social, e corroboradas pelos símbolos midiáticos que pululam em suas consciências fragilizadas.

A não ser que sofra de um distúrbio de personalidade, ninguém escolhe pegar numa arma e ferir ou matar alguém. Esta decisão é, via de regra, permeada por um sistema de crenças que a justifica e que faz dela uma ação inevitável. Um adolescente que pega numa arma para tal fim deve ser avaliado tendo em vista o papel que exerceram sobre ele a família e a sociedade para, somente a partir daí, se perceber o quanto sua atitude está ligada ao seu temperamento ou enquadrada numa rede obtusa de conceitos distorcidos a ele apresentados, seja por um Estado ausente, por uma sociedade discriminatória, por uma escola ineficaz, ou por meios de comunicação amorais.

Ao revelar ao Brasil o rosto desta vítima, a Rede Globo - e não apenas ela, diga-se, mas ela com maior impacto - expressa todos os elementos que perfazem sua ideologia, expressa em sua programação. Ideologia esta criada a partir do maniqueísmo que estimula a perveção e o abandono de valores como a solidariedade.

A utilização do termo "menor" para se eferir a adolescentes pobres ou infratores (pobres), em contraponto aos dolescentes dos programas de tv, é uma das marcas desta açao discriminatoria.
Ou há quem acredite que a novela "Malhação" contempla a vida de jovens como este? Adolescentes absolutamente vulneráveis à influência de primos ricos e famosos que conseguiram escapar da divisão injusta e arbitrária, entre ricos brancos e pobres pretos, que forma o cerne da "Malhação", do "Xou da Xuxa", do "BBB" e do "ti ti ti". A Rede Globo, cinicamente, ri da desgraça deste jovem que ela, junto com todo o grupo de forças que o vilipendiaram, ajudou a se estabelecer na vida dele.

As autoridades que se expõem a este circo macabro dançam a valsa imposta pela emissora dos Marinho. O promotor da Infância e da Juventude chega a ser desmentido pela repórter. Ele, infeliz por se propor a confirmar categoricamente o que lhe havia dito o jovem e ela, atendo-se aos documentos dispobibilizados pela polícia carioca, chama-o implicitamente de idiota, ao mostrar que o adolescente se contradisse no depoimento a ele.

Vê o quanto isso é grave?! Quando, meu Deus, promotores, delegados e juízes deixarão de entender a imprensa como um tal "Quarto poder" e a considerar que, para a opinião pública, assim como para a República, mais vale a lisura do resultado de seu trabalho, do que sua coadjuvação em reportagens impregnadas de tempero ideológico nocivo à necessária revisão de nossos valores, para que nossa sociedade passe cada vez mais a respeitar como tesouros, tanto "os comentários desconcertantes das criancinhas", como os velhos, que vão "perdendo a esperança".

Triste visão: a face deste pobre adolescente! Não deve haver lugar para tamanho desprezo aos Direitos da Criança e do Adolescente. E depois os radicais estão do lado de cá.

domingo, 11 de julho de 2010

A julgar pelas aparências

Fazer uma breve análise destas três capas da Revista Istoé Especial - Encontro com os Editores é  um exercício de leitura semiótica de grande qualidade para quem estuda política no Brasil.  A constatação a que eu chego é que os marketeiros, em sua maioria, não se atentaram para o quão largo é o escopo do seu trabalho e o quanto deveriam todos ser cuidadosos com os detalhes mais ínfimos. Ou não conhecem seus clientes, ou não conhecem o eleitorado que desejam cativar.

Desde já, opino que Dilma foi a que melhor se saiu na capa da Istoé e já falarei sobre suas escolhas para a foto. Vale apenas comentar que, ao que tudo indica, os retratos foram feitos por ocasião da entrevista. Os candidatos estão com as mesmas roupas com que aparecem nos vídeos, apenas a maquiagem foi retocada e a pose ensaiada de acordo com as circunstâncias. Achei justo o parâmetro para a produção da fotografia e por isso penso serem estas capas exemplos interessantes do quanto podem estar equivocados, tanto José Serra quanto Marina Silva, no que diz respeito às espectativas do eleitorado brasileiro, nestes tempos de afirmação nacional e de crescente pujança econômica.


Dilma Rousseff (PT)

Rosto: Olhar firme, resoluto, maquiagem discreta e feminina. Olha para frente, sem medos. O rosto todo exposto às luzes confirma a boa saúde. Seu semblante é simpático, com sombrancelhas que, por sua vez, confirmam seu ar de comandante, além do orgulho de ocupar esta posição. Aberta e sincera, Dilma não parece insegura ao apresentar sua face e sua mensagem.
Mãos: Unidas, a esquerda sobre a direita, envolvendo-a. A cabeça apoiada nelas, pende para a esquerda, gerando uma informação uniforme, que afirma sua tendência política. Como que uma seta se forma de um canto a outro da página, partindo do braço direito de Dilma , dirigindo-se ao É, de Istoé. A seta é ascendente.
Cores e formas: Além desta seta á esquerda, a imagem apresenta uma forma que insinua muita segurança e bases sólidas. A cabeça sorri, amparada pelo ombros que dividem a página. As mãos formam um triângulo que, ao se combinarem com a abertura do blazer, esta tbm um triângulo invertido, ajudam a dar sentido ascendente à fotografia. A cor azul e o bege do blazer acentuam a leveza do semblante da candidata. O relógio remete à gestora ciosa, cumpridora de prazos, um acessório absolutamente coerente com sua imagem pública.
Mensagem geral: De rosto renovado, Dilma diz de onde veio, aonde pretende ir e imprime empatia à sua imagem. Para o alto, avante e à esquerda. O ceu é o limite. As citações e a chamada funcionam como um complemento ideal à foto. Com ou sem interesse em protegê-la, a foto foi tão bem resolvida simbolicamente que, mesmo um letreiro que a tentasse denegrir, certamente esbarraria na força de sua imagem.

Marina Silva (PV)

Rosto: A candidata expressa fragilidade nesta foto. Posicionada de lado,voltada à direita, Marina não parece confortável. O olhar é um tanto cansado e o sorriso é por demais tênue. Eu poderia dizer que apenas o lado esquerdo de seu lábio sorri, timidamente.
Mãos: A mão esquerda parece amparar o rosto, ou sentir-lhe a temperatura. Ou ainda parece querer impedi-la de se voltar ainda mais à esquerda. Esta mão trai-a. A mão direita, oculta, parece estar a amparar a congênere. A meu ver, ocorre uma luta entre mão e rosto. Uma imagem intrigante para mim, por parecer mostrar um auto-abuso, o verdadeiro preço que ela paga a si mesma para estar ali.
Cores e formas: O verde, sim, o verde. A escolha óbvia, para localizá-la novamente no panteão político. As bordas escurecidas, no entanto, acentuam o ambiente claustrofóbico em que se meteu a candidata. Tudo leva a criar uma impressão de opresão sobre ela e o mais inusitado é perceber esta teimosia dela em se voltar à esquerda.
O seu corpo não ocupa toda a extensão da capa, parece ter sido posicionado por uma segunda pessoa. O seu semblante é o de uma pessoa febril. O casaco grosso ajuda a manter esta idéia de fragilidade e os anéis parecem mais amarrar seus dedos que adorná-los.
Mensagem Geral: Marina parece forçada a fazer o que não quer. Perdida e frágil, sua imagem a mim apenas denota o seu desconforto para com o lugar que ocupa atualmente, embora seja visível seu esforço em se forçar a ao menos aparentar o contrário.




José Serra (PSDB)

Rosto: Serra força-se para parecer o que não é: "meigo". Seu riso é sem alegria, e seu olhar é duro e perfurante. A tentativa de sorrir com simpatia lhe é negada pelo peso inerente ao olhar e a sua 'volta à esquerda' demonstra, na verdade, que ele já não se encaixa no papel. A vista cansada não o ajuda e ele sofre de um mal que nada tem a ver com a beleza (ou com a falta dela): Serra não consegue expressar sentimentos e emoções mais gratificantes. Titubeia quando pretende apenas esboçar alguma empatia.
Mãos: A mão esquerda recebe a cabeça, sem ampará-la. A mim, causa desconforto perceber que a 'estrutura' formada pelo dedão e o indicador dobrado não são suficientemente fortes para suportar o seu crânio de fisionomia tão pesada. Ademais, o dedão, em vez de apontar para a esquerda, aponta para trás, dada a posição do corpo frente ao eixo da fotografia, o que dá ao retrato um sentido que não é de modo algum agradável a este candidato de oposição.
Cores e formas: A cor escura do terno e a infeliz escolha da cor de fundo dão um ar soturno à fotografia e expressam muito mais o ambiente de um filme de horror do que a propaganda de um homem que diz haver se preparado toda a vida para presidir o país.Talvez a intenção fosse apresentar sobriedade, contudo o resultado remete a exatamente o tipo de 'castelo' em que ele não pretende, àquela altura da disputa, ver-se associado.
Mensagem Geral: Eu, no lugar de Serra, processaria toda a sua assessoria de comunicação.

A julgar por estas imagens, dá para ver claramente quem se apresenta como vencedora. Antes disso, quem se apresenta como uma candidata com força na disputa. A mim, espanta terem tantos assessores se esquecido das lições de semiótica e deixado de cuidar bem da imagem de seus clientes. Se a imagem vale alguma coisa nesta nossa "cultura do visual", somente Dilma parece ter uma equipe que, efetivamente, a ajuda a ser a Dilma que todos querem ver em frente às câmeras.

quarta-feira, 7 de julho de 2010

1,5 x 10 = Cinema

De que é feito um bom filme?

Falar sobre cinema, como brasileiro, enche-me de certa angústia, porque eu não consigo aceitar a nossa situação periférica no que diz respeito à produção cinematográfica.  Com raras exceções, inclusive com a honrosa presença de um meu conterrâneo Glauber, a quem devemos os princípios pelos quais se regem os melhores projetos de cinema da atualidade, a nossa tradição cinematográfica é, ou obscurecida por um oportunismo irresponsável de cineastas amadores, que resulta na produção de filmes sem a mínima qualidade técnica ou dramatúrgica, ou no lançamento de filmes capengas, oriundos de olhares e de mãos hipnotizadas por um padrão audiovisual extremamente comprometido pelo ritmo e superficialidade televisivos.

As raras exceções, que apresentam apuro técnico e roteiro elaborado, volta e meia confundem-me como espectador, pelo apego à tragédia de cada dia dos pobres brasileiros, numa fetichização desta miséria. Muitos dos nossos filmes apelam para um tal realismo que, embora sejam bem feitos e ofereçam um bom espetáculo cinematográfico, quase podem ser classificados como panfletos direitistas e cínicos, despejados sem dó ou piedade por pequeno burgueses pseudopolitizados.

Porque não basta comprometer o filme com uma "questão social", ou com a exposição de uma tal concepção pessoal sobre "o social". Ele, o filme, há que propiciar a vivência de um drama através da tela, para que seja arte e verdadeiramente arrebate quem o assiste. O fime não precisa embrulhar estômagos, submergindo-se na percepção da 'maldade' na vida de um pobre negro cooptado pela criminalidade, nem de um travesti que enfrenta o status quo à faca, da prostituta fodida e mal paga, ou do adolescente rico sem eiras ou beiras morais que estupra, mata e está nem aí para a vida alheia. Tudo isso em cinema, diria José Louzeiro, é peripécia.

Ação dramática implica a tradução poética de uma situação que pode ou não ter relevância no embate de idéias políticas. A grande dificuldade para um roteirista é expressar uma fala sem que ela pareça um discurso, que soe corriqueira e, ainda assim, cheia de simbolismos pungentes. Caso contrário, a opção por personagens embaraçosamente tristes ou aviltantes, deixa de ser um estilo para ocupar, equivocadamente, o lugar do gênero cinematográfico.

Filmes como Patrik 1,5 despertam-me esse sentimento crítico para com o nosso cinema exatamente por me arrebatarem pela simplicidade coerente, pelo respeito à integralidade  dos personagens. Preste atenção a esta sequência (com legendas em espanhol):





Pronto, não preciso dizer a você que o filme trata da superação de preconceitos. Não preciso dizer que o casal gay está presente, não para se ouvir subliminarmente a esta presença um coro, "oh, são gays equerem adotar uma criança", ou um "oh, um jovem bandido, retroalimentando um sistema miserável e vil", em relação ao Patrik "delinquente". Não, trata-se de um filme sobre alterar um modo de se ver a vida e de sa viver. Um modo de se perceber as memórias, os traumas, as frustrações, as perdas e de ultrapassá-los. Os personagens estão ali por serem arquetípicos, complementam-se para contarem uma história singela, porem repleta de interseções com as histórias de vida dos homens e mulheres que o assistiram comigo naquela noite de sábado.

O cinema não é um divã de diretores presunçosos, nem lhes deve servir como alento a seus egos insaciáveis. Todo maniqueísmo é pernicioso à arte. Toda vaidade embota o talento. Em Patrik 1,5, cada detalhe é leal ao conjunto da trama. Não há uma tentativa de algo ou alguém parecer maior que os desejos dos personagens; desejos estes que se cruzam o tempo inteiro, fazendo os protagonistas solucionarem uma equação complicada por inúmeras variáveis, pelos embaraços provocados pela cultura que cerca a cada um de nós, personagens na tela e cidadãos presentes à sala de cinema.

Em filmes brasileiros, poucas vezes isso acontece. Poderei eu ousar dizer que nunca ocorrem? Não quero ser injusto, por isso admitirei o 'poucas vezes', como para atenuar meu ressentimento. Se pegarmos os mais recentes sucessos de bilheteria nacionais, poupadas as comédias as quais eu não vi e portanto não tenho o que falar, temos filmes sobre a bandidagem, sobre a face escura (negra,sim) do Brasil pobre e racializado, em tramas hipocritamente engendradas para que o brasileiro médio continue a acreditar que a vítima histórica da desigualdade é, na verdade, a culpada pela própria mazela.

A inversão da identidade étnica num filme-referência da produção nacional dos anos 00, "Cidade de Deus", é uma das evidências disso que digo. Baseado em uma etnografia, o diretor optou por retratar negro o personagem sanguinário que, na história real, era branco. Por que será?

Se Patrik 1,5 fosse dirigido por um destes brasileiros, eu não tenho dúvida de que haveria um antentado engendrado pelo adolescente. Ao contrário, Patrik 1,5 transfere parte desta agressividade a um dos gays que formam o casal, de modo a equalizar uma informação elementar do filme: a causa da violência tem múltiplas fontes e não está atrelada ao sujeito, mas principalmente à sua trajetória e à percepção pelo outro de sua carência. Este enfoque nos faz distribuir amor igual aos três personagens centrais e nos faz enxergar a violência que existe por trás da vida regular de um subúrbio sueco, ou de um bairro qualquer na grande Salvador, cheia de histórias de desgraças e explorações.

Assim, eu retorno à pergunta inicial: um filme deve ser feito de abnegação e simplicidade. Uma boa história é maior e mais importante do que um posicionamento subjetivamente considerado edificante - via de regra estas atitudes de soberba acabam por expressar ignomínia e preconceito, comprometendo a obra esteticamente. Uma lição que a maior parte dos deslumbrados diretores brasileiros precisam aprender, antes de quererem as glórias de serem considerados deslumbrantes.