quarta-feira, 31 de março de 2010

Contra o humor preconceituoso

Comentário ao Velório de Léo "Rebolation" Santana no Cemitério das celebridades. Para minha indignação, soma-se a contribuição do Bêbado Gonzo, hiperligada ao texto principal.


Avise aí ao povo de sua vizinhança que a Bahia é mais que tudo isso que o povo de sua vizinhança costuma adorar! Embora eu, baiano, tenha gostado muito deste velório, não posso deixar de me entristecer com a multiplicidade de termos injuriosos e discriminatórios para com os meus.

Há que se aprender a criticar sem ofender e não se trata de optar pelo politicamente correto, mas pelo humoristicamente respeitoso. O que, afinal, o solo baiano tem a ver com isso?

Dá-me uma vontade de ofender os cariocas a partir do MC Serginho e os paulistas a partir do Netinho di Paula, contudo sei que é melhor falar mal particularmente deles e de suas produções (ou extender as críticas aos seus parceiros), em vez de buscar no preconceito puro e simples palavras para expressar minha parcela de raiva para com os sub-produtos de uma cultura que, entretanto, me trouxe Gilberto Gil, Chico Buarque e Ná Ozzetti.

P.S.:

Neste site, O cemitério das Celebridades, o autor, com texto fluente e muito inteligente, costuma falar de paulistas, cariocas, goianos, porém sem jamais ofender o povo destes estados.

Há um gosto nefasto em ofender o baiano, como se fôssemos sub-povo, alienados por natureza, afeitos ao mandonismo etc. Este é um engano que a História brasileira vem corrigindo, ao demonstrar que as mazelas do liberalismo político ou da subcultura advêm de um recôndito da identidade nacional, sendo que, em terras sempre consideradas "modernas", "avançadas" e "civilizadas", vide sul e sudeste do país, vem reinando, em muitos estados, o que havia de pior no patrimonialismo opressor do Nordeste dos idos anos de 1970 e 80.

Portanto, mas que ignominiosa, esta postura expressa uma estupidez a-histórica disfarçada de defesa da "boa" cultura. Valei-me, Dorival Caymmi!

terça-feira, 30 de março de 2010

Pobres prepotentes e gatunos

Kotscho,


para variar, seu texto é muito exato e me leva a refletir.

Diante do que você escreve, eu, que sou jurista de formação, questiono se de fato deixamos de ter direito à resposta, em caso de injúria, difamação, ou imprecisão na informação publicada jornais impressos ou televisivos no Brasil.

O alardeado fim da lei de imprensa e, consequentemente, do Direito de Resposta é questionável, porque não isenta donos de veículos de comunicação das responsabilidades pela informação prestada. Assim:

- caso alguma pessoa, física ou jurídica, é injuriada, difamada ou clauniada, pode recorrer à lei penal e pode, sim, solicitar em juízo o direito de esclarecer, por meio do veículo incriminado, a sua versão do fato;

- Caso a informação passada pelo veículo seja imprecisa, falaciosa, ou mentirosa, cabe acionar o direito da população (direito fundamental, diga-se) de ser bem informada pelos veículos de imprensa, que existem para garantir acesso à verdade dos fatos, nos limites normais da parcialidade, inerentes a todo trabalho "intelectual".

Penso que essa pecha de quarto poder insuflou os egos de seus colegas. Dei aulas em curso de jornalismo e verifiquei como, desde cedo, os alunos de jornalismo são levados a acreditar que têm poder e passam a articular um discurso ao mesmo tempo arrogante e vazio, dado o currículo do curso que, na faculdade em que trabalhei, era notadamente superficial e pouco aprofundado nas questões sociológicas, históricas e mesmo deontológicas que cercam e compõem (ou ao menos deveriam compor) a prática da elaboração e publicação de notícias.

Penso que essa presunção de influência foi o maior tiro no pé que os profissionais desta categoria deram.

Primeiro, porque são, em grande maioria, meros assalariados e a sua atuação é permeada pelas imposições comuns à relação capitalista entre patrões e empragados. A frustração financeira faz, quem sabe, o jornalista pensar: "que falta me fez um estudo melhor do marxismo" (risos)

Em segundo lugar, esta prepotência lhe retira o que consubstancia sua profissão: a credibilidade. Uma informação desligada dos reais acontecimentos é percebida como mentira e, mesmo justificada pelo público tendo em vista os limites ideológicos que cada veículo se impõe (quando estão esclarecidos em seu editorial), este deslocamento do real pelo jornalista é, para mim, o que tem tornado a formação superior nesta área pouco relevante.

Tanto o é que, em períodos de alguma controvérsia, como o eleitoral, bons profissionais gastam muito tempo a escrever sobre a imprensa e a comentar as múltiplas faces dos acontecimentos, como que preenchendo uma lacuna deixada pelos seus colegas e os respectivos patrões.

Uma pena... E ao mesmo tempo um sinal de que, no fim das contas, a vítima do engodo foi o próprio jornalista, já que, de burro o povo tem nada. Nada sinaliza melhor este dado do que a presença de um publicitário como âncora do mais assistido telejornal do país, tornado, inclusive, o segundo mais confiável entre tantos outros notaveis. Vê que um gatuno usurpou de uma prerrogativa da sua profissão, Kotscho, e a leva às últimas consequências, em detrimento de sua categoria?

Forte abraço.


Comentário ao artigo: Papa, Lula, Serra e o poder da imprensa, no blog do jornalista Ricardo Kotscho.

quinta-feira, 25 de março de 2010

Direito à "bandeira"

Em absoluto o "mar de bandeiras da CUT e do PSOL" descredibiliza o movimento dos professores paulistas. São ou não são constitucionalmente garantidos os Direitos Políticos aos cidadãos do Brasil?

A relação sindicatos e governos, em todas as democracias, existe e é legítima. Sua afinidade com correntes ideológicas de Governos e Oposicionistas sucumbe, porém, à sua obrigação de responder à categoria a que representa. Por exemplo, a greve dos Correios, de 2009, quando seus funcionários vaiavam Lula em diversos eventos públicos, tinha a participação da CUT, porque, mesmo afinada ao Governo petista, a CUT tinha que, primordialmente, defender os direitos dos funcionários dos COrreios que estavem, então, em movimento contrário ao do Governo Federal.

Sindicatos são insituições político-representativas, tal qual partidos, e defendem interesses de categorias de profissionais perante o poder dos seus empregadores, sejam estes privados ou públicos e estão, sempre, embasados por ideologias. Contudo, não é a sua postura mais ou menos "amigável" ao empregador que o legitima perante a categoria a que representa, mas sim o cumprimento de seu papel fundamental: expressar descontentamento e prover negociações, quando necessárias.

No fim das contas, com CUT ou sem CUT, o que o professor quer é a atenção às suas demandas, definidas em Assembléia. Se parte da categoria é contrária a tais demandas ou ao método de manifestação, tem esta mesma Assembléia como espaço privilegiado para se posicionarem e defenderem suas posturas. Assim funciona o jogo democrático, em qualquer instância de Poder.

Aos sindicalizados - como cidadãos brasileiros - é conferido o Direito à filiação em partidos e movimentos sociais, sendo que estas "bandeiras" norteiam suas ações políticas. Os sindicalizados, portanto, levam às manifestações que participam as bandeiras que o identificam perante o grupo. Se se tornam diretores de uma instituição sindical, não são obrigados a desfiliarem-se e vão imprimir à sua gestão os parâmetros ideológicos destes mesmos partidos. Nada se pode fazer se os grupos políticos de Direita brasileira não se apoiam em movimentos sociais para tentarem legitimar suas pretenções político-administrativas.

Sendo assim, repetir esse discurso absolutamente anacrônico da Mídia Direitola é estar ignorante dos direitos políticos a que TODO cidadão tem acesso. Tentar descredibilizar uma luta de categoria com base em argumentos desta natureza é assumir uma postura autocrática e que somente favorece à parte opressora numa relação trabalhista, qual seja o empregador, mesmo este sendo um ente público.

Para finalizar, duas considerações:

1. Nenhum sindicato coloca nas ruas um tão grande número de pessoas, obrigando-as a fazê-lo, assim como seus dirigentes ou integrantes não ousariam vaiar o empregador se isso não estivesse coerente com a luta empreendida pela entidade;

2. O Governo de SP não admite, porém tem os salários defasados e as condições de acesso e manutenção na carreira são bastente questionáveis. Se ler com atenção e apuro os "artigos" publicados pelos jornais a respeito da Greve, verá que se tratam de panfletos políticos, moralmente ignóbeis, diferentemente da expressão genuína do Direito de se fazer representar por "bandeiras" de movimentos sociais, sindicais e partidários no Brasil.

Resposta ao Comentário de Clair, no viomundo.com.br


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sábado, 20 de março de 2010

Os donos da notícia


Eu não pude deixar de notar que eles riam quando eu bati na porta da sala de Chalita, o editor-chefe do semanário a que entrego minha vida há três anos. Lá estava, além do chefe, seu subalterno mais devotado, o criador de pseudo furacões midiáticos, conhecido pelos jornalistas como Cabeção.

O silêncio repentino de Cabeção e seu olhar dissimulado denunciavam o assunto com que se ocupavam: sim, era de mim que eles falavam. Ou seria dos tipos como eu, reféns do contracheque que não paga a nossa decepção conosco mesmos? Olhei para o cenário onde mais uma vez me metia e nele estavam esses dois indivíduos odiosos, com poderes para determinarem minha trajetória profissional.

Cabeção, sentado numa poltrona, rodopiava a caneta entre os dedos da mão direita - mão da qual sempre senti nojo, pelo aspecto suado e pálido. Eu costumava imaginar seus pés igualmente brancos, suando nas meias de polyester que, acreditava ele, acrescentavam elegância ao seu terno, contudo apenas me faziam sentir, mesmo de longe, um odor azedo, tal qual seu hálito e seu humor pouco inteligente.

À sua direita e à minha frente, Chalita balançava-se em sua cadeira de couro preta. O chefe é conhecido por seu sadismo e por sua vaidade que, antes de nos amedrontar, nos causa algum riso, dado o modo solene com que recita suas "idéias" sobre o jornalismo que deveríamos criar "juntos".

A verdade é que, com exceção de alguns riquinhos formados na PUC, indicados por seus influentes parentes ou padrinhos, estávamos todos ali por sermos pobres; este era um requisito essencial para a escolha dos profissionais deste semanário. Éramos controlados pela nossa necessidade financeira.

Tal é o nível de controle desta gente sobre nós que é comum, inclusive, a prática de comemorarmos os aniversários em restaurantes caros e pouco afinados às nossas origens e possibilidades. Os mais antigos dizem que este é um artifício para que, tendo os salários reduzidos, estejamos sempre disponíveis às indecentes propostas de trabalhos "extras", missões "investigativas", pautadas no interesse de Chalita e de seus colegas de classe. Estas missões eram sempre orientadas, com histeria e ingerência desmedidas, por Cabeção, que agia no sentido de jogar no lixo todas as nossas expectativas de alcançarmos reputação pelo esforço honesto e pela justeza ética.

Naquela manhã, segui até a sala do chefe ciente de que me seria interposta uma missão das que me fazem querer usar um pseudônimo. Porém, eu estava ainda mais pobre do que da primeira vez, quando escrevi sobre uma suposta reunião entre um ministro de governo e a secretária de um senador comprovadamente corrupto.

Sabe quando se escreve algo no presente, sabendo que a forma verbal correta é o futuro do pretérito? Sim, eu articulei denúncias vazias, a mim trazidas por Cabeção, suscitei uma série de acontecimentos que, provavelmente, não aconteceram e o fiz não por outra motivação, a não ser receber um "extra" ao salário, o que me ajudou a quitar o financiamento do carro. Infelizmente, esta reportagem difamatória repercutiu e mesmo os acusados não conseguiram defesa suficiente para lhes salvarem suas próprias reputações; eles perderam seus cargos e Chalita me presenteou com uma garrafa de espumante. Carro quitado, espumante com a namorada num motel e tudo transcorreu às maravilhas - meu emprego continuou garantido e eu me sentia feliz por ser um jornalista empregado.

E como empregado de baixo rendimento, estou novamente endividado, refém do riso cínico de Cabeção e da empáfia desagradável de Chalita que, assim que eu entrei na sala, como que para me intimidar, voltou-se a Cabeção e comentou: "Este é mesmo dos nossos jornalistas mais esforçados". Com seu riso obtuso habitual, Cabeção lhe respondeu apenas com um chacoalhar de cabeça, enquanto seus olhos percorriam minhas roupas bufas, como se me dissessem que eu precisava me apresentar melhor.

Sentei-me a ouvir a proposta. Depois que Chalita me apresentou a um dossiê sobre o tesoureiro do partido governista, encomendou-me uma matéria em que, com base nos dados do dossiê e em uma bela argumentação, se pudesse ligá-lo a um esquema fraudulento sediado numa associação de produtores rurais, que supostamente havia prejudicado centenas de associados e outros milhares de clientes.

Sem me deixar pousar os olhos nas inúmeras folhas do tal dossiê, Cabeção iniciou seu falatório irritante, indicando-me as páginas com as informações "relevantes" e outras com os nomes das fontes, as quais eu deveria procurar, garantindo que já estava tudo combinado. O número de páginas da reportagem indicava o valor do trabalho e desta vez seriam oito - o suficiente para me render um "extra" na medida para a entrada num sonhado financiamento imobiliário.

Após mais de vinte minutos ouvindo a voz estridente de Cabeção, sob o olhar fixo de Chalita, este fez ecoar a pergunta que selaria o acordo: "E então, podemos contar com você?"

Claro que sim, respondi. E que outra resposta seria possível a mim, com meus sonhos pequenos de comprar um apartamento, presentear minha namorada com uma viagem a Campos do Jordão, comprar uma tv de plasma... Ah, quão triste é estar dependente de vencimentos no final do mês, quão humilhante é estar nas mãos de um homem ignóbil e vil como este Cabeção! E qual não foi minha surpresa quando vi entrar Moreno, com seu sorriso largo e sua cabeleira preta, perguntando aos dois e ignorando completamente a minha presença: "É este o escolhido para a tarefa?"

Tornei-me um "este", mesmo sendo eu que daria o nome àquela conspiração, eu que seria alvo das críticas certeiras dos colegas, que seria desmoralizado dali a algumas semanas; eu, que perderia qualquer resquício de reputação em troca de uma tv de plasma e da entrada num apartamento de dois quartos no centro da cidade.

Em pensar que Cabeção e Moreno são dois empregados, como eu. Contudo eles são amigos do "rei" Chalita e, embora fossem repercutir em suas colunas as informações que eu concatenaria na reportagem de capa, seria a mim que os olhos do país se voltariam, diante de um descalabro de reportagem. Mesmo sabendo que os leitores cativos aprovariam minha façanha jornalística, eu sabia que estes não somavam número suficiente para fazerem vez ao coro de defensores do governo e muito menos aos sinceros defensores da ética jornalística.

E assim o foi. A matéria foi desmoralizada dias após a publicação, por meio de uma nota oficial dos Procuradores da República, desmentindo o aludido no texto. Poucas horas após o desmentido, tornei-me no exemplo cabal do profissional indesejado pela categoria, minha caixa postal estava repleta de mensagens indignadas e agressivas, de colegas e leitores, que me cobravam provas maiores que as "evidências" e as "denúncias" por mim levantadas. Mesmo com toda a repercussão negativa, Cabeção e Moreno reverberaram as acusações em suas colunas, porém, antes que a semana acabasse, partiram para outro fato, deixando-me sozinho no corredor de minha desolação.

No auge de meu desespero, quando já não conseguia encarar meus colegas e minha família, já tendo a conta bancária recheada com o pagamento prometido pelo trabalho malfazejo, fui chamado novamente à sala de Chalita.

Desta vez, o Homem estava sozinho. Ordenou-me secamente que me sentasse e, sem rodeios, sentenciou-me a um calvário maior: "Você escreverá um texto a partir deste título: 'Governo não atenta às denúncias e mantém tesoureiro no cargo'. Serão mais duas páginas em que manteremos nossa posição e lançaremos, novamente, a suspeita de que o Governo é conivente com as falcatruas de seu homem do dinheiro".

Respondi-lhe, cabisbaixo: Senhor, nada há o que sustente este argumento. Terei que fazer um malabarismo... Fui cortado por sua voz imponente, um tom acima: "Você ainda não entendeu meu caro?! Quero este novo texto hoje ainda, ao final do dia, em minha caixa de mensagens." No que eu lhe perguntei: Haverá alguma compensação por mais este trabalho? Riu discretamente, balbuciou qualquer coisa que eu não compreendi e me respondeu, ainda sorrindo: "Não, desta vez correrá por conta do seu justo salário".

Ah, a inglória tarefa de mentir e a igualmente aviltante dependência de homens sem caráter! Sem esperança de construir qualquer prestígio entre meus pares, escrevi mais uma ficção a mando de meu editor-chefe, desta vez antevendo-me em minha velhice solitária, envergonhada e triste, sentado numa cadeira de vime, na pequena varanda do apartamento que eu visitara mais cedo e que decidira comprar, antes de me dirigir à redação para mais um dia de trabalho.

sexta-feira, 5 de março de 2010

Hipocrisia racista

O pronunciamento do Senador Demóstenes Torres (DEM-GO) no Supremo Tribunal Federal, na manhã de 03 de março de 2010, em Audiência Pública a respeito da manutenção do sistema de cotas em universidades públicas, interessa pelo caráter retrógrado, que revela haver no Brasil, ainda, vozes que hipocritamente reverberam noções falidas de brasilidade e estimulam a negação e a desvalorização das heranças africana e ameríndia, predominantes em quase todas as nossas representações culturais.

Contudo, é óbvio que estes ecos de um passado que teima em se manter aceso só poderiam surgir de uma voz atrelada a um partido como o DEMocratas. Os autores citados pelo senador, a ideologia subjacente e a evidente precaução conta a africanização do Brasil, mostram que não se esgotaram as razões para a luta pela afirmação dos direitos de negros e índios (e, obviamente, miscigenados), subjugados violentamente pela ânsia euroamericana de explorar recursos naturais e materiais à custa da escravidão (o Deputado Ronaldo Caiado estava presente) e morte (efetiva ou simbólica) de parcelas importantes da população brasileira.

A participação do Senador inicia-se aos 32 minutos, contudo não deixa de ser interessante a contraposição de argumentos anteriormente à sua intervenção.




O argumento das "cotas sociais" apresentado por Torres desconsidera, dentre outros pontos, que:

- Muitos dos "pardos" do IBGE são pretos embranquecidos subjetivamente;
- Muitos dos brancos são, na verdade, pardos;
- O ideal do embranquecimento é a grande violência étnica ainda em tela no Brasil: cabelos alisados, roupas de marca, namoradas louras etc;

A discussão sobre ações afirmativas tem a vantagem de levar o indivíduo pobre a refletir e a reconsiderar a expressão de sua auto-imagem.
Faz também o Brasil questionar se não é cruel e discriminatório apoiar subliminarmente a extinção do homem negro, seja por sua associação constante a mulheres enlourecidas ou a perseverante inculcação na mulher negra da preferência por parceiros (mais) brancos.

Ademais, não estão interpostos, nas propostas de quotização de vagas unversitárias, limites para a agregação de pardos, ou brancos. Podem ser construídos critérios de inclusão pelas cotas que abranjam o nível de vulnerabilidade econômica. Contudo, efetivamente, os pobres no Brasil são mesmo - parafraseado Gil e Caetano - "todos pretos" ou "quase todos pretos".

As forças conservadoras brasileiras ainda teimam em eliminar oportunidades aos negros, proque sabem que, quando os pardos se reconhecerem e se afirmarem com deferência à história de suas linhagens, teremos muitos mais negros e índios lutando para a ampliação do sistema legal de políticas afirmativas e assumindo cada vez mais predominantemente postos de poder. Sonho com o dia em que, no Brasil, não se fabriquem mais "brancos", como os de Fontes, ou mesmo "pardos" como próprio Demóstenes Pontes.

Quanto à citação de Gilberto Freyre: além de ignóbil e de demonstrar a preguiça intelectual do senador, a lembrança deste traço parcial e ultrapassado da produção intelectual brasileira soa-me desrespeitosa, inclusive, com a "avó mulata" do parlamentar, provavelmente fruto de uma relação sexual forçada, entre um "senhor" pardo e ela, uma serviçal negra ou mulata; no sec XVII, éramos uma imensa nação de mestiços relegados à ralé, ou compontentes de uma ínfima aristocracia parda na alta classe.

Por sua vez, a alegação da participação dos africanos no tráfico de escravos, além de aviltante, já foi posta em cheque por amplos setores da inteligência brasileira e internacional, justamente porque desconsidera a profusão de nações levadas a se reorganizarem em África, após a chegada do europeu.
Fenômeno análogo ocorreu na América, com o acirramento das disputas entre nações indígenas, sob a interferência e a ingerência européias. O argumento de Demóstenes cria a mesma relação entre "Africa subsariana" e selvageria, que homogeniza pejorativamente uma África retalhada pelo vilipêndio e pela exploração empreendidos pelos Estados "civilizados" do velho continente.

Demóstenes prova que lemos realmente com o olho interior e o dele é segregador e embranquecido.

P.S.: Aproveito para deixar aqui o link para um dos meus poemas a respeito da miscigenação brasileira:
Entre nômades e bravos



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quinta-feira, 4 de março de 2010

Por um carnaval sem cordas

Deixei que o tempo passasse, antes de escrever sobre minha primeira experiência no carnaval soteropolitano. O motivo de minha escusa é simples: eu saí deste carnaval sentindo o êxtase e a satisfação de haver vivido uma intensa festança popular e não conseguiria, por certo, repercutir a idéia que desejo ver expandida por meio deste texto.

Eu quero lançar uma crítica e instigar um movimento de arrebentação das cordas que separam os componentes de blocos dos foliões pipocas. Das cordas que cercam e sacralizam artistas mediocres e estimulam a segregação que se reproduz em atos de violência.

Breve incursão histórica, para começar. Na Bahia do final da década de setenta, tinha-se:

Trios tornando-se máquinas gigantescas e artistas experimentando maneiras de se apresentarem para públicos cada vez maiores - o crescimento demandava investimento de grandes somas. Haveria que se tornar numa "indústria" o carnaval da Bahia, em nome do legado de Dodô e Osmar, que criaram o ancestral do trio elétrico, a Fumbica. Ambos se notabilizaram ainda pela invenção da guitarra baiana.

Os salões dos clubes particulares onde a classe média curtia seus bailes iam se esvaziando. A rua passava a ter os melhores desfiles de atrações, com ênfase para o encontro de trios na Praça Castro Alves, a Praça do Povo. Os Novos Baianos já eram ídolos em 1979, Moraes Moreira já havia sido o primeiro cantor de trio, o frevo se encontrou com o afoxé e as ruas se tornaram palco do mais profuso baile. Aos poucos, novos artistas e mais inovações.

Este cenário escondia o desafio que proporcionou ao carnaval uma ruptura de padrões e resultou num enviesamento comercial que, ao tempo em que o tornava mais intenso, também o fazia mais injusto e concentrador de dividendos.
Pode-se dizer que a oligarquia dominante da Bahia do Regime Militar entendeu na potencialidade comercial da festa uma maravilhosa oportunidade de, ao estimular o desenvolvimento da indústria carnavalesca local, angariar aprovação popular e o apreço da classe empresarial, especialmentede animadores culturais e seus conjuntos musicais, pela capacidade de atraírem patrocinadores e turistas.

E assim foi até que, já no final dos anos de 1980, os trios se distribuíram também entre os antes restritos blocos afro, ensimesmados por acompanharem a pé o cortejo, enquanto os artistas brancos iam se posicionando como reis da folia, co-financiados por poderosas marcas comerciais e organizados como verdadeiras corporações que, atreladas à mídia local e nacional, criaram artistas que se tornaram objeto de culto de numerosa juventude. Aos poucos, juntos, empresários, governantes e artistas, desenharam um cenário de privilégios e segregação que ainda prevalece nos festejos de fevereiro em Salvador.

Como medida para garantir o financiamento dos trios, cada vez mais arrojados e caros, os empresários culturais de então passaram a desenhar os caminhos musicais por onde evoluiriam, a partir da grande revolução que se iniciou com o trio Dodô e Osmar. Consideraram, em 2010, que o lançamento do LP "Magia", de Luiz Caldas, em 1985, representou o divisor de águas, que recriou o carnaval e instaurou uma nova mitologia, composta pela mistura de ritmos e por um uso mais eficaz dos meios de comunicação, inclusive com a celebrização de seus representantes.

Enfim, a indústria estava inaugurada e eis que passou a se repetir um ciclo comum à história comercial brasileira: o da exploração sem fim de recursos finitos, neste caso a paciência do folião pipoca, prejudicado pelos blocos invasivos.

Ao longo de toda a década de 1990, fortunas se ergueram e caíram, ídolos nacionais foram forjados, alguns impostos, outros renegados. 25 anos despois deste "marco inaugural", o moderno carnaval parece velho, se vistos pelos olhos de um folião que costuma acompanhar o Chiclete com Banana do lado de cá da corda.

É que, na verdade, 1985 marca a consolidação dos blocos, no modelo surgido no final dos anos 70 e amplamente aprimorado até o final dos anos 90. Mesmo blocos afro-baianos tradicionais, após ganharem notoriedade, implantaram também a política do cordeamento e passaram a agregar em seus blocos parcela considerável de turistas étnicos.

Não pretendo e nem posso descrever uma trajetória dos afoxés e dos blocos afro, em toda a sua riqueza histórica de afirmação étnica e cultural. Pretendo apenas demonstrar que a existência dos blocos comerciais tornara-se hegemônica, a ponto de impor-se aos legítimos representantes do samba-reggae, especialmente, dentre outros notáveis, o inesquecível Neguinho do Samba que, ao contrário de Luiz Caldas, rompeu, em 1980, com a estrutura melódica do frevo e do afoxé e apresentou ao mundo uma transposição orquestrada do som dos tambores herdados de África. Uma das manifestações musicais populares brasileiras mais ricas e relevantes das últimas décadas.

Quero neste texto confrontar-me com a existência dos blocos e com a suposta legitimidade do sistema "industrial" que os justificaria.
Os efeitos perversos deste sistema começam a surgir logo depois de superada a fase inicial de estrita dependência da receita da venda dos abadás, para o financiamento da saída de bandas como Eva e Chiclete com Banana, precursoras do que chamo modelo de exploração particular do carnaval de rua.

Ao longo dos anos, estes conjuntos musicais ganharam fama e fortuna suficientes para garantirem a saída de seus trios, para a alegria da galera. Contudo, optaram por manter o referido modelo, já que lhes era conveniente, e o multiplicaram por micaretas e carnavais fora de epoca. Passou a ser comercializado o fetiche por esta ou aquela mercadoria, por este ou aquele abadá que me garantiria a companhia segura e confortável do meu ídolo da "Axé Music", ao longo da Avenida. Há pessoas que saem no mesmo blóco há mais de duas décadas.

Somam-se aos ganhos com a venda de abadás toda uma série de produtos articulados às imagens dos artistas e, claro, ao calor da festa. Camarotes (grande parte deles é produzida por agências de propriedade dos artistas), patrocínios e mershandising.
É impressionante a quantidade de balões de propaganda que acompanham os trios, fazendo as vezes de bonecos ou estandartes. É absurdo o preço de uma diária num camarote, que varia de 150 a mais de 1.000 reais. São inúmeros os outdoors e vídeos comerciais, levando a marca ou a imagem de cantores e cantoras. Nos trios de bloco, preponderam cartazes e paineis luminosos, que lançam incessantemente logomarcas e dizeres relativos a bebidas, carros, governos e bancos.

A imprensa pinta este como o "maior carnaval popular" do Brasil, cinicamente se esquecendo da manutenção do carnaval de rua de Olinda-Recife. Paga-se caro para frequentar o carnaval de Salvador e, neste sentido, são explorados turistas e nativos abastados, idiotizados em seus caros uniformes carnavalescos, os tais abadás. Os amantes corajosos da festa saem de casa dispostos a se engajar na pipoca. E eu, felizmente, fui um deles.

Fiz de minhas saídas manifestos contra as cordas dos blocos. Fui um pipoca e digo, com certeza: o carnaval da Bahia é uma festa popular, desde que sem cordas.
Barato, seguro e democrático, até que se veja cordeiros de blocos levarem renitentes uma enorme, pesada e maleável cerca em torno do trio, a protegerem os filhos e filhas dos homens e mulheres "de bem", os novo-ricos esfuziantes, os adolescentes a mil, as solteiras ativas, os namorados fujões, os beijoqueiros lascivos, a maioria deles mantida a altas taxas de álcool e outras drogas.
"Gente bonita" encarcerada em sua própria presunção de prestígio, em seus antigos bailes de clube, agora ambulantes; gente jovem liberada do peso que seu status social lhe impõe, como regra de vida.
Sem perigo, sem alma, o carnaval pago a vista, ou em 24 meses, no carnê ou no cartão.

Trata-se de uma inversão tão deliberada que, quando um artista opta por se apresentar num trio sem cordas, diz-se que ele ou ela optou pelo "trio independente". Não deveria ser independente o que aglutina milhares de pessoas pagantes? Não há dinheiro que chegue aos empresários da cultura, porém a maré já se lhes opõe: a opinião pública começa a perceber que vem sendo vilipendiada, em favor da diversão de uma minoria.

Ver pela TV um artista "dependente", como Bell Marques, reclamar dos balões publicitários que o impediam de enxergar a pipoca espremida contra uma parede da Avenida Carlos Gomes, só pode ser entendido como um sinal da decadência desse modelo. Este senhor lançou um automóvel com a sua marca, Camaleão, durante o verão e ainda se viu no direito de "fechar a rua"?! Assim como ele, quantos lucram com o carnaval "democrático" de Salvador? Três ou quatro. Se eles deixassem de puxar seus blocos (ah, como seria lindo se a pipoca os boicotasse!!), eles estariam falidos? Nenhum deles, mesmo os mais pobres.

O público os seleciona e os prestigia pela demonstração incansável de talento e musicalidade. Resta saber se eles seriam tão animadores, se não pudessem gritar, "eu quero ver esse bloco lindo sair do chão!" para, ao verem seus seguidores pulando freneticamente, pensarem, "eles me amam e provaram isso, ao comprarem meu abadá".

Sarajane, pioneira do "Axé" disse, em uma entrevista, que o máximo, para ela, era ver quem "puxava mais gente", na época em que os blocos ainda não tinham se firmado como uma "tradição". Dona de talento precoce para o trio, Sarajane foi abocanhada pelo furacão Daniela Mercury que, por sua vez, também ofuscou o brilho de uma das maiores cantoras brasileiras, Margareth Menezes. E deu no que se tem hoje, com Cláudias e Ivetes digladiando-se entre garrafas de bebida e alpercatas.

Os cordeiros são a imagem mais degradada deste carnaval de blocos. Homens e mulheres pobres, às vezes já em idade avançada. São eles que levam a corda, empurrados tanto pelos associados, como pelos foliões pipocas. Até o ano passado, estes trabalhadores atuavam sem garantia de qualquer direito, inclusive de equipamentos de segurança. Mais de 20 anos depois, conseguiram se organizar a ponto de conseguirem que lhes dessem água ao longo do percurso e que lhes fornecessem luvas. Parafraseando um certo anti-comunista, eu diria que 'do baixo de suas cordas', estes indivíduos invisíveis são os que sofrem na folia. E por estragarem seus pés e mãos, receberam em 2010, em média, 30 reais por dia. Um exemplo típico das opressões que o "Mercado" impõe aos mais pobres, quando lhe deixam agir indiscriminada e desreguladamente.

Sempre será necessário que a administração pública garanta durante a festa, além da proteção e do oferecimento de serviços de Saúde e Assistência Social, a permanência e a apresentação de grandes e pequenos conjuntos tradicionais, de importantes artistas esquecidos pelo rei-mercado, de outras manifestações culturais populares, assim como talvez estarão sempre presentes os artistas enriquecidos pelo trabalho junto às massas, que terão os trios mais ricos e bem equipados, ao menos é assim que reza a cartilha capitalista.

Em se tratando do carnaval de Salvador, urge que se reveja, entretanto, os limites do interesse privado, para se garantir, inclusive, a pacificação das pessoas na festa, bem como a diversidade musical.

Acabar com os blocos é condição para a evolução do carnaval de Salvador. Reprimir a sanha especulativa dos pequenos grupos e deixar que preponderem a liberdade e a música é imperativo. Respeitar o talento e a exposição artística não implica cerceamento de direito de ir e vir do folião e da foliã. O natural é não comprar o abadá.

Pela volta da fantasia e pela extinção das cordas nas Avenidas, durante os dias e noites em que a cidade se rende ao irresistível, embora não compulsório e apenas potencialmente saudável, apelo da carne por prazer e alegria e pelo encontro de outros corpos, igualmente soltos e embalados pela música capaz de arrastar multidões extasiadas.