Este texto deve iniciar-se com uma diferenciação semântica, crucial para que o seu argumento faça sentido e ganhe relevância: há que se distinguir a hipocrisia do cinismo.
Diz-se hipócrita o dissimulado, que finge possuir crenças e valores que realmente não tem; cínico, por sua vez, é aquele que não tem empatia, descarado, sem pudor frente o sentimento e razões do alheio.
Diante destas breves definições, fica-me a dúvida: o jornalismo daquela facção que chamei Mídia Direitola, composto basicamente pelas Rede Globo e Bandeirantes e pelos periódicos dos Grupos Abril, Folha e Estado de São Paulo, é cínico ou hipócrita?
Na busca de uma resposta, ainda que parcial, vou destacar o Jornal Nacional de hoje. Eu poderia comentar o editorial da Folha, o que me levaria, provavelmente, a um mesmo resultado. Porém, muito já foi dito sobre isso (exemplos: aqui e aqui).
Considerei exemplar o episódio de hoje deste seriado, chamado há tantos anos Jornal Nacional, que já tem se tornado o mais longo da televisão brasileira. Estrelado por um casal que, de vez em quando cede lugar a outro casal, como hoje, ou a uma dupla masculina multi-étnica.
Vou descrever quatro 'cenas', como se fossem de um programa ficional, tanto para vestir o meu texto com certo "cinismo", como para poder traduzir as intenções do autor do drama, por trás das "informações" de cada fala, especialmente as dos narradores remotos, na bancada, distantes do local onde ocorre a cena, e as dos narradores presenciais.
Cena 1 - Quem pegou a gravação com o relato do "assassino"?
São 4'56" de desenvolvimento da trama anunciada no capítulo anterior, apresentando o ocorrido no fim de semana. O suspense gerou um fato novo e resta descobrir quem roubou o vídeo e o exibiu. Teria sido vendido por Ana Maria e Alessandra, ou serão elas tão vítimas quanto Eliza? Por que Marco Antônio as expulsou da corporação, estaria ele acobertando com isso o delegado Edson, verdadeiro contrabandista do arquivo videográfico? estas não são as perguntas cruciais, embora as falas dos narradores levem o público a se ocupar delas.
Veja que a história parece ter ficado intrincada, mas é um artifício corriqueiro da dramaturgia para televisão, onde o drama ocorre em meio a uma enorme rede de tipos.
Este homem falastrão e de expressão arregalada, que passa a dominar a cena e que foi o designado a mostrar o vídeo, passa a ser figura central para o desembaraço dos acontecimentos. Portanto, a frase dos narradores, "O diretor-geral, delegado Marco Antônio Monteiro, determinou que a Corregedoria Geral de Polícia apure em 48 horas a responsabilidade pelo vazamento do vídeo", é cínica e serve apenas para confundir o público. Nada mais que isso, afinal, não seria esse novo personagem a chave para se decifrar o mistério sobre quem contrabandeou o vídeo? Afinal, quem lho entregou.
Há quem saiba mais sobre a trama que os narradores: o próprio autor. Ele que oprime o personagem, por ser dele um deus. Dono das suas alegrias e angústias, esse criador é cruel e, portanto, é cínico. Os personagens dissimulados, como estes narradores e o homem falastrão, são hipócritas. Não são donos da verdade e apenas fingem que o são. Estão a serviço do onisciente narrador, que conhece o desfecho da trama.
Cena 2 - O imperador restringe ainda mais a entrada de ex-colonos incivilizados
Esta cena é ainda mais elucidativa do lugar da hipocrisia e do cinismo neste drama. Os narradores, remotos e presenciais, fingem que isto não lhes diz respeito, vestem-se com as roupas do imperador, deixam-se contaminar por sua doença. Acima deles, o cinismo do seu líder, traduzido na primeira linha (nota-se que sãos os narradores remotos os que são designados a repetirem ipsis literis a intenção do autor. Embora hipócritas por natureza, assumem o cinismo, como marionetes do dono do drama):
" O governo dos Estados Unidos anunciou que vai mandar soldados para reforçar a segurança na fronteira com o México. A decisão foi tomada depois de mais uma chacina no país vizinho provocada por traficantes de drogas."
Cinismo! Sabem que os verdadeiros assassinos são os soldados do imperador. Os colonos incivilizados morreram em nome do triunfo do império - somente este lucra com tudo isto, o enredo é sobre esta ignomínia. Este viés do cinismo expresso pelo narrador é o que ajuda a encher a trama de vigor e a esconder a presença onisciente do autor.
O narrador em cena diz: "A polícia diz que é mais um ataque resultado de uma violenta disputa entre traficantes de drogas, que se intensificou nos últimos três anos e meio, depois que o governo do México decidiu enfrentar as quadrilhas." Hipocrisia!
Mais adiante: "Nos últimos três anos, a polícia já apreendeu 75 mil armas e pôs na cadeia 78 mil pessoas. Mas os ataques frequentes das quadrilhas mostram que a guerra ao tráfico no México está longe de acabar." Hipocrisia!
E, finalmente, o clímax da cena: "Essa nova onda de assassinatos teve reflexos também nos Estados Unidos. Nesta segunda, o governo decidiu reforçar a fronteira com o México e vai enviar para lá a partir de agosto mais 1,2 mil soldados da Guarda Nacional, que vão ajudar no combate à imigração ilegal e ao tráfico de drogas." Hipocrisia! É por esta dissimulação em omitir que conhece o resultado do conflito que o autor utiliza os personagens para anunciar as cenas dos próximos capítulos, deixando o público em suas mãos, continuamente.
Cena 3 - O reaparecimento do 'miquinho'
Apenas uma cena de passagem, em que a narradora expressa, sem muita maestria, a sua hipocrisia. A frase, "A expansão das plantações de chá no país é apontada como responsável pela quase extinção desse primata", dssimula sobre a responsabilidade do opressor, sujeito oculto na história. Ela sabe de quem eram as plantações de chá, mas não quer que o público desperte seu ódio para com este antagonista, como seria natural. Faz isso, para preservar a continuidade do drama. Obedece ao cinismo do dono desta ficção. Um autor maniqueísta preserva com mais veemência a integridade de seus vilões.
Cena 4 - A floresta vazia e o caboclo ludibriado
Aí está um modelo típico de anuência cordata entre narrador e autor. Simbiose quase perfeita, tentam expressar compaixão pelos personagens do drama, com o fim de enganar o público. No fundo, os odeiam.
""Quando falamos de Amazônia ligamos à natureza. No entanto, 70% da população da Amazônia mora na cidade"", José Ademir foi vilipendiado, como o foi Pedro Pntes, quando disse: "“Eu me considero um homem da floresta. A diferença só que nos mora na cidadezinha”". Ambos foram chamados de tolos, toda a trama serve para desnudá-los, extrai-los do seu campo de verdade, torná-los heróis de fachada, tal qual a floresta retratada.
Aqui estãoos verdadeiros heróis, adornados por suas sagas fantasiosas: "Os primeiros a enfrentar essas poderosas regras da natureza foram os portugueses, a partir do século dezessete", diz o narrador, e é quando ele asfixia Pedro Pontes, José Ademir e também o prefeito, Raimundo. Extraem destes e dos demais coadjuvantes a propriedade histórica de suas ações.
E o cinismo escondido, sorrateiramente mantido pelo autor, entre as palavras do narrador presencial, este também um enganado: "A floresta começou a ser derrubada e novas cidades surgiram por outros interesses econômicos. Para as madeireiras, floresta era só matéria prima. Para a pecuária e a agricultura em larga escala, um obstáculo a ser removido da terra". Percebe a ignomínia na afirmação quase insultosa?
Cinco minutos de um destempero perigoso para o desenvolvimento do drama: posicionar-se tão ao lado da vítima, a ponto de quase obscurecer a figura a ser obliquamente enaltecida e da qual se extrairá a lição final da tragédia.
Este seriado, diga-se uma verdade sobre ele, prima por manter um 'truque' dramatúrgico singular: a verdade é como que hipnoticamente sublimada da vontade do narrador. Ele apenas narra, apaga-se, empresta-se completamente ao drama. O autor opera por ele sua sanha moralizante, neste tipo de encenação.
No caso desta cena 4, e talvez em todo o episódio, o protagonista inaugurou sua glória há cinco séculos. Tanto o autor, como os narradores, servem-lhe de escudo. O cinismo do autor está em conhecer esta verdade e dissimulá-la, sem compaixão.
A hipocrisia está em quem, por dinheiro ou fama, intercede em seu nome e embebeda o público com uma artimanha de linguagem, que o engana e o faria achar cada dia este seriado o mais inebriante, porém, dada sua repetição e obviedade - e pela falta de talento dos narradores substitutos do casal central - estas artimanhas de ludirio estão chegando ao seu ponto de falência.
Não lhe restarão outra saída, senão substituírem a ficção por um jornalismo honesto e reto.
Não só o drama mas, em mt's casos a necessidade (ao menos do ponto de vista do sensacionalismo) de um "personagem" e de se aprofundar na vida (normalmente sem qualquer validade) deste "personagem". Daí, normalmente, vem o drama.
ResponderExcluirAmbos são desnecessários, o personagem e o drama. Mas vendem.