quinta-feira, 15 de julho de 2010

A face do desrespeito aos jovens

É de se espantar o grau de espetacularização a que chegou o caso do assassinato de Eliza Samudio. Supostamente, ela foi morta por uma ação engendrada  por um ídolo do futebol nacional, o goleiro do Flamengo, Bruno. Uso a palavra 'supostamente', tão querida por eles mesmos da mídia em tempos de disse-me-disse infundado, para deixar gravada a minha sensação de desconfiança para com tudo o que vem sendo veiculado pela imprensa brasileira sobre este caso.

Foram derrubados e pisoteados todos os preceitos éticos que devem pautar a prática jornalística, assim como tem sido absolutamente questionável a atuação de um delegado mineiro, responsável pela investigação. Não vou tecer maiores comentários sobre isso, mas apenas analisar a quase histeria em torno deste caso, que já toma, a meu ver, ares de uma brutal insanidade coletiva. Uma boa amostra desta violência praticada pelos veículos de comunicação e pela polícia surge no vídeo abaixo, especificamente a 0'24'', quando uma certa imagem é sorrateiramente revelada ao Brasil:



Sim, mostraram o rosto do adolescente que participou deste crime e que o atesta por seu depoimento decisivo. E ao fazê-lo, a Rede Globo demonstra duas facetas de sua ignomínia: o desrespeito às leis e às autoridades e a sanha de fazer dinheiro com a alimentação de mórbidas curiosidades do telespectador.

O Estatuto da Criança e do Adolescente é claro ao exigir a preservação da identidade de indivíduos com menos de dezoito anos de idade, especialemte em situações que os exponham a constrangimentos ou a quaisquer outros tipos de risco à sua integridade moral e física. Ao exibir o rosto deste jovem, a Rede Globo, em horário "nobre", o lançou definitivamente ao inferno do julgamento público, o desrespeitou e o desdenhou, de modo a intensificar, dentre outros mitos infames, a teoria de que se faz necessária a redução da maioridade penal.

Todavia, pelo tipo de participação deste jovem, fica claro que ele foi levado ao ato pela influência que certamente seu primo Bruno exercia sobre ele. Um adolescente, por mais envolvido que esteja com a criminalidade, é um sujeito em formação e relativamente incapaz de prever as consequências dos seus atos. É nisso que a nossa Legislação acredita e, neste ponto, ela tem meu apoio.

Sei que é fácil a contestação desta tese pelo senso comum. Eu mesmo fui um adolescente que amadureci muito cedo, que me considerei senhor de minhas escolhas lá pelos catorze anos. Contudo, mais velho, eu percebi que o que eu tinha era informação, não discernimento. Sei que, em sua maioria, os jovens possuem informações suficientes sobre o mundo à sua volta, porém estas informações pouco lhes servem cotidianamente como parâmetro para a tomada de decisões, uma vez que, antes delas, temos as configurações familiares e as dificuldades da vida que interferem sobre os seus olhares e os fazem julgar equivocadamente os fatos que se lhes apresentam.

Em meu trabalho junto a adolescentes em cumprimento de medida socioeducativa de Semi-liberdade, conheci dezenas de jovens. A maioria deles envolvidos com o tráfico de drogas, seja por meio da distribuição ou do furto para fins de consumo de crack. Outros envolvidos em agressões ou infrações contra a ordem pública, além de alguns homicidas. A maioria deles é, entretanto, vítima de um sistema social que os oprime e isola.

Sou categórico ao dizer: a minoria comete atos infracionais por ter o temperamento voltado à pratica de atos violentos; para a maioria dentre os que eu atendi, a violência é um elemento do discurso que viabliza sua inclusão entre os fortes e os temidos, de modo a escamotear seus sentimentos de inferioridade, que lhes foram inculcados desde a infância pela visão de sua própria miséria econômica e de sua exclusão social, e corroboradas pelos símbolos midiáticos que pululam em suas consciências fragilizadas.

A não ser que sofra de um distúrbio de personalidade, ninguém escolhe pegar numa arma e ferir ou matar alguém. Esta decisão é, via de regra, permeada por um sistema de crenças que a justifica e que faz dela uma ação inevitável. Um adolescente que pega numa arma para tal fim deve ser avaliado tendo em vista o papel que exerceram sobre ele a família e a sociedade para, somente a partir daí, se perceber o quanto sua atitude está ligada ao seu temperamento ou enquadrada numa rede obtusa de conceitos distorcidos a ele apresentados, seja por um Estado ausente, por uma sociedade discriminatória, por uma escola ineficaz, ou por meios de comunicação amorais.

Ao revelar ao Brasil o rosto desta vítima, a Rede Globo - e não apenas ela, diga-se, mas ela com maior impacto - expressa todos os elementos que perfazem sua ideologia, expressa em sua programação. Ideologia esta criada a partir do maniqueísmo que estimula a perveção e o abandono de valores como a solidariedade.

A utilização do termo "menor" para se eferir a adolescentes pobres ou infratores (pobres), em contraponto aos dolescentes dos programas de tv, é uma das marcas desta açao discriminatoria.
Ou há quem acredite que a novela "Malhação" contempla a vida de jovens como este? Adolescentes absolutamente vulneráveis à influência de primos ricos e famosos que conseguiram escapar da divisão injusta e arbitrária, entre ricos brancos e pobres pretos, que forma o cerne da "Malhação", do "Xou da Xuxa", do "BBB" e do "ti ti ti". A Rede Globo, cinicamente, ri da desgraça deste jovem que ela, junto com todo o grupo de forças que o vilipendiaram, ajudou a se estabelecer na vida dele.

As autoridades que se expõem a este circo macabro dançam a valsa imposta pela emissora dos Marinho. O promotor da Infância e da Juventude chega a ser desmentido pela repórter. Ele, infeliz por se propor a confirmar categoricamente o que lhe havia dito o jovem e ela, atendo-se aos documentos dispobibilizados pela polícia carioca, chama-o implicitamente de idiota, ao mostrar que o adolescente se contradisse no depoimento a ele.

Vê o quanto isso é grave?! Quando, meu Deus, promotores, delegados e juízes deixarão de entender a imprensa como um tal "Quarto poder" e a considerar que, para a opinião pública, assim como para a República, mais vale a lisura do resultado de seu trabalho, do que sua coadjuvação em reportagens impregnadas de tempero ideológico nocivo à necessária revisão de nossos valores, para que nossa sociedade passe cada vez mais a respeitar como tesouros, tanto "os comentários desconcertantes das criancinhas", como os velhos, que vão "perdendo a esperança".

Triste visão: a face deste pobre adolescente! Não deve haver lugar para tamanho desprezo aos Direitos da Criança e do Adolescente. E depois os radicais estão do lado de cá.

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