quinta-feira, 4 de março de 2010

Por um carnaval sem cordas

Deixei que o tempo passasse, antes de escrever sobre minha primeira experiência no carnaval soteropolitano. O motivo de minha escusa é simples: eu saí deste carnaval sentindo o êxtase e a satisfação de haver vivido uma intensa festança popular e não conseguiria, por certo, repercutir a idéia que desejo ver expandida por meio deste texto.

Eu quero lançar uma crítica e instigar um movimento de arrebentação das cordas que separam os componentes de blocos dos foliões pipocas. Das cordas que cercam e sacralizam artistas mediocres e estimulam a segregação que se reproduz em atos de violência.

Breve incursão histórica, para começar. Na Bahia do final da década de setenta, tinha-se:

Trios tornando-se máquinas gigantescas e artistas experimentando maneiras de se apresentarem para públicos cada vez maiores - o crescimento demandava investimento de grandes somas. Haveria que se tornar numa "indústria" o carnaval da Bahia, em nome do legado de Dodô e Osmar, que criaram o ancestral do trio elétrico, a Fumbica. Ambos se notabilizaram ainda pela invenção da guitarra baiana.

Os salões dos clubes particulares onde a classe média curtia seus bailes iam se esvaziando. A rua passava a ter os melhores desfiles de atrações, com ênfase para o encontro de trios na Praça Castro Alves, a Praça do Povo. Os Novos Baianos já eram ídolos em 1979, Moraes Moreira já havia sido o primeiro cantor de trio, o frevo se encontrou com o afoxé e as ruas se tornaram palco do mais profuso baile. Aos poucos, novos artistas e mais inovações.

Este cenário escondia o desafio que proporcionou ao carnaval uma ruptura de padrões e resultou num enviesamento comercial que, ao tempo em que o tornava mais intenso, também o fazia mais injusto e concentrador de dividendos.
Pode-se dizer que a oligarquia dominante da Bahia do Regime Militar entendeu na potencialidade comercial da festa uma maravilhosa oportunidade de, ao estimular o desenvolvimento da indústria carnavalesca local, angariar aprovação popular e o apreço da classe empresarial, especialmentede animadores culturais e seus conjuntos musicais, pela capacidade de atraírem patrocinadores e turistas.

E assim foi até que, já no final dos anos de 1980, os trios se distribuíram também entre os antes restritos blocos afro, ensimesmados por acompanharem a pé o cortejo, enquanto os artistas brancos iam se posicionando como reis da folia, co-financiados por poderosas marcas comerciais e organizados como verdadeiras corporações que, atreladas à mídia local e nacional, criaram artistas que se tornaram objeto de culto de numerosa juventude. Aos poucos, juntos, empresários, governantes e artistas, desenharam um cenário de privilégios e segregação que ainda prevalece nos festejos de fevereiro em Salvador.

Como medida para garantir o financiamento dos trios, cada vez mais arrojados e caros, os empresários culturais de então passaram a desenhar os caminhos musicais por onde evoluiriam, a partir da grande revolução que se iniciou com o trio Dodô e Osmar. Consideraram, em 2010, que o lançamento do LP "Magia", de Luiz Caldas, em 1985, representou o divisor de águas, que recriou o carnaval e instaurou uma nova mitologia, composta pela mistura de ritmos e por um uso mais eficaz dos meios de comunicação, inclusive com a celebrização de seus representantes.

Enfim, a indústria estava inaugurada e eis que passou a se repetir um ciclo comum à história comercial brasileira: o da exploração sem fim de recursos finitos, neste caso a paciência do folião pipoca, prejudicado pelos blocos invasivos.

Ao longo de toda a década de 1990, fortunas se ergueram e caíram, ídolos nacionais foram forjados, alguns impostos, outros renegados. 25 anos despois deste "marco inaugural", o moderno carnaval parece velho, se vistos pelos olhos de um folião que costuma acompanhar o Chiclete com Banana do lado de cá da corda.

É que, na verdade, 1985 marca a consolidação dos blocos, no modelo surgido no final dos anos 70 e amplamente aprimorado até o final dos anos 90. Mesmo blocos afro-baianos tradicionais, após ganharem notoriedade, implantaram também a política do cordeamento e passaram a agregar em seus blocos parcela considerável de turistas étnicos.

Não pretendo e nem posso descrever uma trajetória dos afoxés e dos blocos afro, em toda a sua riqueza histórica de afirmação étnica e cultural. Pretendo apenas demonstrar que a existência dos blocos comerciais tornara-se hegemônica, a ponto de impor-se aos legítimos representantes do samba-reggae, especialmente, dentre outros notáveis, o inesquecível Neguinho do Samba que, ao contrário de Luiz Caldas, rompeu, em 1980, com a estrutura melódica do frevo e do afoxé e apresentou ao mundo uma transposição orquestrada do som dos tambores herdados de África. Uma das manifestações musicais populares brasileiras mais ricas e relevantes das últimas décadas.

Quero neste texto confrontar-me com a existência dos blocos e com a suposta legitimidade do sistema "industrial" que os justificaria.
Os efeitos perversos deste sistema começam a surgir logo depois de superada a fase inicial de estrita dependência da receita da venda dos abadás, para o financiamento da saída de bandas como Eva e Chiclete com Banana, precursoras do que chamo modelo de exploração particular do carnaval de rua.

Ao longo dos anos, estes conjuntos musicais ganharam fama e fortuna suficientes para garantirem a saída de seus trios, para a alegria da galera. Contudo, optaram por manter o referido modelo, já que lhes era conveniente, e o multiplicaram por micaretas e carnavais fora de epoca. Passou a ser comercializado o fetiche por esta ou aquela mercadoria, por este ou aquele abadá que me garantiria a companhia segura e confortável do meu ídolo da "Axé Music", ao longo da Avenida. Há pessoas que saem no mesmo blóco há mais de duas décadas.

Somam-se aos ganhos com a venda de abadás toda uma série de produtos articulados às imagens dos artistas e, claro, ao calor da festa. Camarotes (grande parte deles é produzida por agências de propriedade dos artistas), patrocínios e mershandising.
É impressionante a quantidade de balões de propaganda que acompanham os trios, fazendo as vezes de bonecos ou estandartes. É absurdo o preço de uma diária num camarote, que varia de 150 a mais de 1.000 reais. São inúmeros os outdoors e vídeos comerciais, levando a marca ou a imagem de cantores e cantoras. Nos trios de bloco, preponderam cartazes e paineis luminosos, que lançam incessantemente logomarcas e dizeres relativos a bebidas, carros, governos e bancos.

A imprensa pinta este como o "maior carnaval popular" do Brasil, cinicamente se esquecendo da manutenção do carnaval de rua de Olinda-Recife. Paga-se caro para frequentar o carnaval de Salvador e, neste sentido, são explorados turistas e nativos abastados, idiotizados em seus caros uniformes carnavalescos, os tais abadás. Os amantes corajosos da festa saem de casa dispostos a se engajar na pipoca. E eu, felizmente, fui um deles.

Fiz de minhas saídas manifestos contra as cordas dos blocos. Fui um pipoca e digo, com certeza: o carnaval da Bahia é uma festa popular, desde que sem cordas.
Barato, seguro e democrático, até que se veja cordeiros de blocos levarem renitentes uma enorme, pesada e maleável cerca em torno do trio, a protegerem os filhos e filhas dos homens e mulheres "de bem", os novo-ricos esfuziantes, os adolescentes a mil, as solteiras ativas, os namorados fujões, os beijoqueiros lascivos, a maioria deles mantida a altas taxas de álcool e outras drogas.
"Gente bonita" encarcerada em sua própria presunção de prestígio, em seus antigos bailes de clube, agora ambulantes; gente jovem liberada do peso que seu status social lhe impõe, como regra de vida.
Sem perigo, sem alma, o carnaval pago a vista, ou em 24 meses, no carnê ou no cartão.

Trata-se de uma inversão tão deliberada que, quando um artista opta por se apresentar num trio sem cordas, diz-se que ele ou ela optou pelo "trio independente". Não deveria ser independente o que aglutina milhares de pessoas pagantes? Não há dinheiro que chegue aos empresários da cultura, porém a maré já se lhes opõe: a opinião pública começa a perceber que vem sendo vilipendiada, em favor da diversão de uma minoria.

Ver pela TV um artista "dependente", como Bell Marques, reclamar dos balões publicitários que o impediam de enxergar a pipoca espremida contra uma parede da Avenida Carlos Gomes, só pode ser entendido como um sinal da decadência desse modelo. Este senhor lançou um automóvel com a sua marca, Camaleão, durante o verão e ainda se viu no direito de "fechar a rua"?! Assim como ele, quantos lucram com o carnaval "democrático" de Salvador? Três ou quatro. Se eles deixassem de puxar seus blocos (ah, como seria lindo se a pipoca os boicotasse!!), eles estariam falidos? Nenhum deles, mesmo os mais pobres.

O público os seleciona e os prestigia pela demonstração incansável de talento e musicalidade. Resta saber se eles seriam tão animadores, se não pudessem gritar, "eu quero ver esse bloco lindo sair do chão!" para, ao verem seus seguidores pulando freneticamente, pensarem, "eles me amam e provaram isso, ao comprarem meu abadá".

Sarajane, pioneira do "Axé" disse, em uma entrevista, que o máximo, para ela, era ver quem "puxava mais gente", na época em que os blocos ainda não tinham se firmado como uma "tradição". Dona de talento precoce para o trio, Sarajane foi abocanhada pelo furacão Daniela Mercury que, por sua vez, também ofuscou o brilho de uma das maiores cantoras brasileiras, Margareth Menezes. E deu no que se tem hoje, com Cláudias e Ivetes digladiando-se entre garrafas de bebida e alpercatas.

Os cordeiros são a imagem mais degradada deste carnaval de blocos. Homens e mulheres pobres, às vezes já em idade avançada. São eles que levam a corda, empurrados tanto pelos associados, como pelos foliões pipocas. Até o ano passado, estes trabalhadores atuavam sem garantia de qualquer direito, inclusive de equipamentos de segurança. Mais de 20 anos depois, conseguiram se organizar a ponto de conseguirem que lhes dessem água ao longo do percurso e que lhes fornecessem luvas. Parafraseando um certo anti-comunista, eu diria que 'do baixo de suas cordas', estes indivíduos invisíveis são os que sofrem na folia. E por estragarem seus pés e mãos, receberam em 2010, em média, 30 reais por dia. Um exemplo típico das opressões que o "Mercado" impõe aos mais pobres, quando lhe deixam agir indiscriminada e desreguladamente.

Sempre será necessário que a administração pública garanta durante a festa, além da proteção e do oferecimento de serviços de Saúde e Assistência Social, a permanência e a apresentação de grandes e pequenos conjuntos tradicionais, de importantes artistas esquecidos pelo rei-mercado, de outras manifestações culturais populares, assim como talvez estarão sempre presentes os artistas enriquecidos pelo trabalho junto às massas, que terão os trios mais ricos e bem equipados, ao menos é assim que reza a cartilha capitalista.

Em se tratando do carnaval de Salvador, urge que se reveja, entretanto, os limites do interesse privado, para se garantir, inclusive, a pacificação das pessoas na festa, bem como a diversidade musical.

Acabar com os blocos é condição para a evolução do carnaval de Salvador. Reprimir a sanha especulativa dos pequenos grupos e deixar que preponderem a liberdade e a música é imperativo. Respeitar o talento e a exposição artística não implica cerceamento de direito de ir e vir do folião e da foliã. O natural é não comprar o abadá.

Pela volta da fantasia e pela extinção das cordas nas Avenidas, durante os dias e noites em que a cidade se rende ao irresistível, embora não compulsório e apenas potencialmente saudável, apelo da carne por prazer e alegria e pelo encontro de outros corpos, igualmente soltos e embalados pela música capaz de arrastar multidões extasiadas.

5 comentários:

  1. Excelente reflexão!! meu amigo, parabéns pelo texto.

    Maris Stella

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  2. Parabéns pelo artigo. É a mais pura realidade que as pessoas insistem em esconder: a elitização do carnaval de salvador.

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  3. O texto está ótimo. Porém, só fazendo uma observação, puxar é com "X" e não com "CH".

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  4. Obrigado pela indicação do erro, Anônimo. Sou um escritor um tanto disléxico.

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  5. Que ótimo artigo. Consegue exprimir o sentimento de pelo menos metade da população de Salvador.
    Parabéns!!

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