sábado, 20 de março de 2010

Os donos da notícia


Eu não pude deixar de notar que eles riam quando eu bati na porta da sala de Chalita, o editor-chefe do semanário a que entrego minha vida há três anos. Lá estava, além do chefe, seu subalterno mais devotado, o criador de pseudo furacões midiáticos, conhecido pelos jornalistas como Cabeção.

O silêncio repentino de Cabeção e seu olhar dissimulado denunciavam o assunto com que se ocupavam: sim, era de mim que eles falavam. Ou seria dos tipos como eu, reféns do contracheque que não paga a nossa decepção conosco mesmos? Olhei para o cenário onde mais uma vez me metia e nele estavam esses dois indivíduos odiosos, com poderes para determinarem minha trajetória profissional.

Cabeção, sentado numa poltrona, rodopiava a caneta entre os dedos da mão direita - mão da qual sempre senti nojo, pelo aspecto suado e pálido. Eu costumava imaginar seus pés igualmente brancos, suando nas meias de polyester que, acreditava ele, acrescentavam elegância ao seu terno, contudo apenas me faziam sentir, mesmo de longe, um odor azedo, tal qual seu hálito e seu humor pouco inteligente.

À sua direita e à minha frente, Chalita balançava-se em sua cadeira de couro preta. O chefe é conhecido por seu sadismo e por sua vaidade que, antes de nos amedrontar, nos causa algum riso, dado o modo solene com que recita suas "idéias" sobre o jornalismo que deveríamos criar "juntos".

A verdade é que, com exceção de alguns riquinhos formados na PUC, indicados por seus influentes parentes ou padrinhos, estávamos todos ali por sermos pobres; este era um requisito essencial para a escolha dos profissionais deste semanário. Éramos controlados pela nossa necessidade financeira.

Tal é o nível de controle desta gente sobre nós que é comum, inclusive, a prática de comemorarmos os aniversários em restaurantes caros e pouco afinados às nossas origens e possibilidades. Os mais antigos dizem que este é um artifício para que, tendo os salários reduzidos, estejamos sempre disponíveis às indecentes propostas de trabalhos "extras", missões "investigativas", pautadas no interesse de Chalita e de seus colegas de classe. Estas missões eram sempre orientadas, com histeria e ingerência desmedidas, por Cabeção, que agia no sentido de jogar no lixo todas as nossas expectativas de alcançarmos reputação pelo esforço honesto e pela justeza ética.

Naquela manhã, segui até a sala do chefe ciente de que me seria interposta uma missão das que me fazem querer usar um pseudônimo. Porém, eu estava ainda mais pobre do que da primeira vez, quando escrevi sobre uma suposta reunião entre um ministro de governo e a secretária de um senador comprovadamente corrupto.

Sabe quando se escreve algo no presente, sabendo que a forma verbal correta é o futuro do pretérito? Sim, eu articulei denúncias vazias, a mim trazidas por Cabeção, suscitei uma série de acontecimentos que, provavelmente, não aconteceram e o fiz não por outra motivação, a não ser receber um "extra" ao salário, o que me ajudou a quitar o financiamento do carro. Infelizmente, esta reportagem difamatória repercutiu e mesmo os acusados não conseguiram defesa suficiente para lhes salvarem suas próprias reputações; eles perderam seus cargos e Chalita me presenteou com uma garrafa de espumante. Carro quitado, espumante com a namorada num motel e tudo transcorreu às maravilhas - meu emprego continuou garantido e eu me sentia feliz por ser um jornalista empregado.

E como empregado de baixo rendimento, estou novamente endividado, refém do riso cínico de Cabeção e da empáfia desagradável de Chalita que, assim que eu entrei na sala, como que para me intimidar, voltou-se a Cabeção e comentou: "Este é mesmo dos nossos jornalistas mais esforçados". Com seu riso obtuso habitual, Cabeção lhe respondeu apenas com um chacoalhar de cabeça, enquanto seus olhos percorriam minhas roupas bufas, como se me dissessem que eu precisava me apresentar melhor.

Sentei-me a ouvir a proposta. Depois que Chalita me apresentou a um dossiê sobre o tesoureiro do partido governista, encomendou-me uma matéria em que, com base nos dados do dossiê e em uma bela argumentação, se pudesse ligá-lo a um esquema fraudulento sediado numa associação de produtores rurais, que supostamente havia prejudicado centenas de associados e outros milhares de clientes.

Sem me deixar pousar os olhos nas inúmeras folhas do tal dossiê, Cabeção iniciou seu falatório irritante, indicando-me as páginas com as informações "relevantes" e outras com os nomes das fontes, as quais eu deveria procurar, garantindo que já estava tudo combinado. O número de páginas da reportagem indicava o valor do trabalho e desta vez seriam oito - o suficiente para me render um "extra" na medida para a entrada num sonhado financiamento imobiliário.

Após mais de vinte minutos ouvindo a voz estridente de Cabeção, sob o olhar fixo de Chalita, este fez ecoar a pergunta que selaria o acordo: "E então, podemos contar com você?"

Claro que sim, respondi. E que outra resposta seria possível a mim, com meus sonhos pequenos de comprar um apartamento, presentear minha namorada com uma viagem a Campos do Jordão, comprar uma tv de plasma... Ah, quão triste é estar dependente de vencimentos no final do mês, quão humilhante é estar nas mãos de um homem ignóbil e vil como este Cabeção! E qual não foi minha surpresa quando vi entrar Moreno, com seu sorriso largo e sua cabeleira preta, perguntando aos dois e ignorando completamente a minha presença: "É este o escolhido para a tarefa?"

Tornei-me um "este", mesmo sendo eu que daria o nome àquela conspiração, eu que seria alvo das críticas certeiras dos colegas, que seria desmoralizado dali a algumas semanas; eu, que perderia qualquer resquício de reputação em troca de uma tv de plasma e da entrada num apartamento de dois quartos no centro da cidade.

Em pensar que Cabeção e Moreno são dois empregados, como eu. Contudo eles são amigos do "rei" Chalita e, embora fossem repercutir em suas colunas as informações que eu concatenaria na reportagem de capa, seria a mim que os olhos do país se voltariam, diante de um descalabro de reportagem. Mesmo sabendo que os leitores cativos aprovariam minha façanha jornalística, eu sabia que estes não somavam número suficiente para fazerem vez ao coro de defensores do governo e muito menos aos sinceros defensores da ética jornalística.

E assim o foi. A matéria foi desmoralizada dias após a publicação, por meio de uma nota oficial dos Procuradores da República, desmentindo o aludido no texto. Poucas horas após o desmentido, tornei-me no exemplo cabal do profissional indesejado pela categoria, minha caixa postal estava repleta de mensagens indignadas e agressivas, de colegas e leitores, que me cobravam provas maiores que as "evidências" e as "denúncias" por mim levantadas. Mesmo com toda a repercussão negativa, Cabeção e Moreno reverberaram as acusações em suas colunas, porém, antes que a semana acabasse, partiram para outro fato, deixando-me sozinho no corredor de minha desolação.

No auge de meu desespero, quando já não conseguia encarar meus colegas e minha família, já tendo a conta bancária recheada com o pagamento prometido pelo trabalho malfazejo, fui chamado novamente à sala de Chalita.

Desta vez, o Homem estava sozinho. Ordenou-me secamente que me sentasse e, sem rodeios, sentenciou-me a um calvário maior: "Você escreverá um texto a partir deste título: 'Governo não atenta às denúncias e mantém tesoureiro no cargo'. Serão mais duas páginas em que manteremos nossa posição e lançaremos, novamente, a suspeita de que o Governo é conivente com as falcatruas de seu homem do dinheiro".

Respondi-lhe, cabisbaixo: Senhor, nada há o que sustente este argumento. Terei que fazer um malabarismo... Fui cortado por sua voz imponente, um tom acima: "Você ainda não entendeu meu caro?! Quero este novo texto hoje ainda, ao final do dia, em minha caixa de mensagens." No que eu lhe perguntei: Haverá alguma compensação por mais este trabalho? Riu discretamente, balbuciou qualquer coisa que eu não compreendi e me respondeu, ainda sorrindo: "Não, desta vez correrá por conta do seu justo salário".

Ah, a inglória tarefa de mentir e a igualmente aviltante dependência de homens sem caráter! Sem esperança de construir qualquer prestígio entre meus pares, escrevi mais uma ficção a mando de meu editor-chefe, desta vez antevendo-me em minha velhice solitária, envergonhada e triste, sentado numa cadeira de vime, na pequena varanda do apartamento que eu visitara mais cedo e que decidira comprar, antes de me dirigir à redação para mais um dia de trabalho.

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