sexta-feira, 5 de março de 2010

Hipocrisia racista

O pronunciamento do Senador Demóstenes Torres (DEM-GO) no Supremo Tribunal Federal, na manhã de 03 de março de 2010, em Audiência Pública a respeito da manutenção do sistema de cotas em universidades públicas, interessa pelo caráter retrógrado, que revela haver no Brasil, ainda, vozes que hipocritamente reverberam noções falidas de brasilidade e estimulam a negação e a desvalorização das heranças africana e ameríndia, predominantes em quase todas as nossas representações culturais.

Contudo, é óbvio que estes ecos de um passado que teima em se manter aceso só poderiam surgir de uma voz atrelada a um partido como o DEMocratas. Os autores citados pelo senador, a ideologia subjacente e a evidente precaução conta a africanização do Brasil, mostram que não se esgotaram as razões para a luta pela afirmação dos direitos de negros e índios (e, obviamente, miscigenados), subjugados violentamente pela ânsia euroamericana de explorar recursos naturais e materiais à custa da escravidão (o Deputado Ronaldo Caiado estava presente) e morte (efetiva ou simbólica) de parcelas importantes da população brasileira.

A participação do Senador inicia-se aos 32 minutos, contudo não deixa de ser interessante a contraposição de argumentos anteriormente à sua intervenção.




O argumento das "cotas sociais" apresentado por Torres desconsidera, dentre outros pontos, que:

- Muitos dos "pardos" do IBGE são pretos embranquecidos subjetivamente;
- Muitos dos brancos são, na verdade, pardos;
- O ideal do embranquecimento é a grande violência étnica ainda em tela no Brasil: cabelos alisados, roupas de marca, namoradas louras etc;

A discussão sobre ações afirmativas tem a vantagem de levar o indivíduo pobre a refletir e a reconsiderar a expressão de sua auto-imagem.
Faz também o Brasil questionar se não é cruel e discriminatório apoiar subliminarmente a extinção do homem negro, seja por sua associação constante a mulheres enlourecidas ou a perseverante inculcação na mulher negra da preferência por parceiros (mais) brancos.

Ademais, não estão interpostos, nas propostas de quotização de vagas unversitárias, limites para a agregação de pardos, ou brancos. Podem ser construídos critérios de inclusão pelas cotas que abranjam o nível de vulnerabilidade econômica. Contudo, efetivamente, os pobres no Brasil são mesmo - parafraseado Gil e Caetano - "todos pretos" ou "quase todos pretos".

As forças conservadoras brasileiras ainda teimam em eliminar oportunidades aos negros, proque sabem que, quando os pardos se reconhecerem e se afirmarem com deferência à história de suas linhagens, teremos muitos mais negros e índios lutando para a ampliação do sistema legal de políticas afirmativas e assumindo cada vez mais predominantemente postos de poder. Sonho com o dia em que, no Brasil, não se fabriquem mais "brancos", como os de Fontes, ou mesmo "pardos" como próprio Demóstenes Pontes.

Quanto à citação de Gilberto Freyre: além de ignóbil e de demonstrar a preguiça intelectual do senador, a lembrança deste traço parcial e ultrapassado da produção intelectual brasileira soa-me desrespeitosa, inclusive, com a "avó mulata" do parlamentar, provavelmente fruto de uma relação sexual forçada, entre um "senhor" pardo e ela, uma serviçal negra ou mulata; no sec XVII, éramos uma imensa nação de mestiços relegados à ralé, ou compontentes de uma ínfima aristocracia parda na alta classe.

Por sua vez, a alegação da participação dos africanos no tráfico de escravos, além de aviltante, já foi posta em cheque por amplos setores da inteligência brasileira e internacional, justamente porque desconsidera a profusão de nações levadas a se reorganizarem em África, após a chegada do europeu.
Fenômeno análogo ocorreu na América, com o acirramento das disputas entre nações indígenas, sob a interferência e a ingerência européias. O argumento de Demóstenes cria a mesma relação entre "Africa subsariana" e selvageria, que homogeniza pejorativamente uma África retalhada pelo vilipêndio e pela exploração empreendidos pelos Estados "civilizados" do velho continente.

Demóstenes prova que lemos realmente com o olho interior e o dele é segregador e embranquecido.

P.S.: Aproveito para deixar aqui o link para um dos meus poemas a respeito da miscigenação brasileira:
Entre nômades e bravos



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