domingo, 9 de maio de 2010

O mal é a hipocrisia


Hoje à tarde, assisti o filme Pecado da Carne (Einaym Pkuhot, 2010), do israelense Haim Tabakman, numa sala de cinema, ao lado de dezenas de outros gays e lésbicas.

A história de Aaron, um judeu ortodoxo casado, pai de quatro filhos, que se apaixona por um jovem forasteiro e com ele vive momentos de forte intensidade
afetiva, deprimiu-me ao final. Talvez porque me fez reviver lembranças ingratas de alguns anos atrás, ou porque me fez ressentir a raiva que não consigo deixar de sentir por homens e mullheres gays enrustidos.

O filme é excelente, por ter usado o judaísmo para escancarar um problema social comum, mesmo em culturas mais liberais, como a nossa. Também é ótimo por não demonizar nenhuma das partes, mostrando que todos agem de acordo com seu conjunto de valores.

Contudo, fica clara que a encruzilhada onde se coloca o enrustido é resultado de sua acomodação numa sociedade de padrões injustos. Esta ambiguidade entre o sentido e o vivido, entre a crenças e as emoções mais íntimas é exposta pelo filme no caso da personagem Sara. Ela está noiva de um "homem virtuoso", porém ama e é amada por Ismael, de quem é obrigada a se separar pela ação de uma comissão formada pelo rabino do bairro, por seu pai e por Aaron, que procuram e ameaçam o amado de Sara.

Mesmo vivendo um amor, Aaron serve, impassível, aos ditames da sociedade que lhe sugará os sentimentos até que ele definhe nos braços da sua jovem e incauta esposa, do mesmo modo que Sara definhará sob a ação preponderante do marido com quem se casa sem vontade. Penso que, com esta personagem, o filme mostra que a doença do enrustimento é causa e consequência de uma série de situações inglórias que acometem os mais diversos tipos de sujeitos.

"Por favor, proteja-me"

Eu não o protegeria, Aaron! Deixo este papel à sua esposa, pobre coitada.

Não me venha dizer que a sociedade é perversa, que o preconceito oprime e dificulta a assunção de posturas sexuais baseadas na honestidade e no auto-respeito; não me venha dizer que os homossexuais enrustidos sejam fruto compreensível de culturas fundadas em cânones religiosos sufocantes e não me venha colocar esta parcela de homens e mulheres num altar de admiração e piedade, tornando-os troféus a um sem número de gays e lésbicas. Recuso-me a seguir novamente por este caminho de condescendência.

Quantas vezes eu próprio não morri de amores por um homem cujo coração se dividia entre o encontro de um parceiro confiável e devotado e a necessidade de forjar uma heterossexualidade, para apresentá-la à comunidade e à família, como prova de sua mais-valia masculina?! E quantos não são os meus amigos e amigas que caem ou já caíram na armadilha de sofrer por tempos, por não se encaixarem na agenda daquele ou daquela que ama e de quem sentem emanar por si um verdadeiro amor? Como isso corrói nossa auto-estima!

Para além da bissexualidade, condição que eu tenho alguma dificuldade em reconhecer, quando apenas serve a escamotear uma evidente preferência homoerótica, o enrustimento de muitos homens e mulheres é uma faceta da sexualidade embotada pela cultura, que carrega o sumo amargo da traição mais torpe.

Primeiro, uma auto-traição, que torna o enrustido num indivíduo cego em relação às necessidades afetivas alheias. Sentindo-se vitimizado, pessoas assim costumam ser egocêntricas e usarem de chantagem para se fazerem entender. Acabam por submeter o objeto de seu desejo a situações humilhantes ou mesmo degradantes. Este, o segundo sujeito traído numa relação que esconde outras partes, igualmente traídas.

A esposa(o), namorada(o) é vilipendiado em sua confiança e usado em sua inocência. Ouso dizer que este ou esta seja a principal vítima da convivência com um enrustido. Tudo o que ocorre entre ela e o enrustido é vazio, inclusive o sexo. Não é raro encontrarmos casais em que o enrustido apresenta uma aparência saudável e bonita, em contraponto ao semblante pesado e à fisionomia desgrenhada de seu companheiro oficial.

Por fim, a comunidade também é traída, porque tem nesta categoria um conjunto de pessoas que alimentam ódio e negação sobre sua condição, capazes de atitudes das mais censuráveis.

A atitude obtusa de alguém que se manifesta em posturas radicais, ou violentas, muitas vezes esconde uma identidade individual cerceada pela impossibilidade de viver o que realmente sente. Muitas vezes, são subservientes à família, contudo a odeiam. Repercutem este ódio naqueles que buscaram os meios de viverem sob a mesma cultura que os oprime, sem abrirem mão de externarem suas emoções. Os enrustidos são muito homofóbicos, via de regra.

Um gay ou lésbica que com ele se relaciona estaria apenas dando vazão a seu masoquismo, este também um efeito perverso da opressão moralista? Eis aí uma pergunta que deve variar caso a caso, mas que não diminui a perversidade da ação do enrustido, que gosta demanipular as carências do seu objeto, lançando-o num jogo de 'dá e toma' que funciona eficazmente como um argumento a mais na refenização do homossexual acometido da convivência afetiva com ele.

Os enrustidos que não respondem à sua tendência homoerótica com violência, são acovardados, aprendem a se odiar e, por vezes, traem-se mais uma vez, ao apresentarem comportamento e gestual homoerótico, tornando-se alvos de chacotas de quem os observa submersos em extrema hipocrisia. Dá-me pena ver a vergonha de quem o ladeia e se vê obrigado(a) a ser cúmplice na farsa patética.

Assim, resta-me lamentar a existência destes substratos de uma cultura aviltante. Ou melhor, restar-me-ia lamentar a nossa tendência em interpor à cultura as responsabilidades pela covardia de uns otários que optam pelo engano e a ignomínia, em detrimento da liberdade. Orientação sexual não é uma opção, como já o sabemos, o enrustimento, sim.

Diga-me o que quiser, porém eu sustento o que penso sobre os enrustidos: tratam-se de homens e mulheres que se acovardam e que povoam nossos espaços mais variados com opiniões e atitudes oblíquas, das quais devemos, os gays e lésbicas, nos afastar. A não ser que queiramos viver um período de extrema angústia.

Um comentário:

  1. Murilo. Enrustidos ou não, já tenho consciência que o mundo é gay. O universo, a economia, a cultura, a política, todo o mundo é gay.

    ResponderExcluir